9 de julho: Índios atacam os jesuítas de Piratininga

por Gustavo Neves da Rocha Filho

“Na Capitania de São Vicente, que é de Martim Afonso de Souza nunca nela houve guerras com os índios naturais que chamam tupis, que sempre foram amigos dos portugueses, salvo no ano de 1562, que foram uns poucos do sertão por sua maldade (ficando a maior parte amiga como dantes) deram guerra a Piratininga, vila de São Paulo, onde há casa da Companhia, 10 léguas da povoação do mar de São Vicente, mas logo ao segundo dia foram fugindo para suas terras pela resistência que acharam nos portugueses e índios cristãos que foram contra seus mesmos pais, filhos e irmãos em defesa da igreja. Daí a pouco tempo morreram os mais destes levantados e tornaram a ficar as pazes e amizades fixas como dantes.” (ANCHIETA, 1984:194).

Anchieta, em sua carta datada de São Vicente, 16 de abril de 1563, conta com mais fidelidade e cores vivas o episódio histórico. Revela que desde cinco anos antes, quando abandonaram a Aldeia de Piratininga, na qual ficaram cinco ou seis homens idosos, casados, os índios pregavam a guerra contra os jesuítas. Mas entre os que partiram muitos já eram cristãos e assim, no dia 3 de julho de 1562, um destes veio correndo avisar que seus parentes estavam prontos para o ataque.

E foi de tal sorte que, de noite à luz de velas acesas, vinham tremendo de frio (que nesta época é aqui muito intenso), a bater à porta da vila, não por medo que tivessem dos seus, mas coagidos ao que parece pelo poder de Deus sem quase perceberem o que faziam.

“Chegado pois o dia [9 de julho], que foi a oitava da Visitação de Nossa Senhora, investiu pela manhã contra Piratininga a hoste numerosa dos contrários, pintados e empenachados, com enorme alarido, aos quais saíram incontinente a receber os nossos discípulos, que eram poucos, com grande denodo. E os trataram muito mal. Foi coisa de pasmar que ali se encontravam e se contrapunham às flechadas irmãos a irmãos, primos a primos, sobrinhos a tios, e o que é mais, dois filhos, que eram cristãos e estavam conosco, contra o próprio pai, que estava contra nós.

As mulheres e crianças dos portugueses e até mesmo as dos índios se recolheram quase todas em nossa casa e igreja, por ser um pouco mais segura e forte, onde algumas mestiças passaram toda a noite em oração.

  Tiveram-nos sitiados dois dias apenas, de peleja ininterrupta, ferindo muitos dos nossos índios e, conquanto muitas flechadas fossem perigosas, nenhum morreu. Mas dos inimigos houve muitos feridos e alguns mortos, entre os quais se encontrou um nosso catecúmeno, que pode ser considerado capitão dos malvados. Sabendo este que todas as mulheres se haviam de recolher em nossa casa e que aqui havia mais que saquear, veio dar o assalto pela cerca de nossa horta, mas aí o topou uma flecha, que lhe deu pela barriga e o matou.

No segundo dia de combate, achando-se bem malferidos e maltratados, e perdida já a esperança de penetrar na praça, deram a sacrificar as vacas dos cristãos e mataram muitas, destruindo grande parte das plantações pelo campo a fora. Sobre a tarde se puzeram em fuga, e com tal rapidez que não esperava o pai pelo filho, nem irmão por irmão. Saíram-lhes no encalço os nossos discípulos e aprisionaram dois fugitivos. (LEITE, 1958:549)

Na ocasião do ataque de 9 de julho, apenas quatro moradores tinham construído casas na vila recém transferida de Santo André como se pode constatar pela leitura das atas da Câmara dos anos de 1562, muito embora pelo menos vinte e quatro portugueses tivessem suas fazendas nas imediações onde criavam bois, produziam grande quantidade de farinha de mandioca e doces em conserva, como a marmelada, para vender aos moradores da marinha e abastecimento de navios que passavam pelo porto de São Vicente.

Na sessão da Câmara do dia 9 de abril de 1564 os vereadores se reuniram para lerem uma carta do Capitão-mor na qual era pedida a remessa de 200 bois e de farinhas para a armada. As farinhas estavam sendo produzidas, mas os bois não poderiam ser levados senão com muita gente. Por isso deviam pedir que mandassem um homem que os viesse buscar.

Resolveram os oficiais da câmara aproveitar a presença da armada de Estácio de Sá para requerer ao capitão que desse guerra aos índios que os ameaçavam e para isso deram como justificativa o ataque que os jesuítas sofreram em 9 de julho.

Não lhes fazendo a gente desta capitania mal nenhum, quebraram a paz que conosco tinham e vieram sobre esta vila e a tiveram em cerco por certos dias, e assim de então até agora haverá dois anos, com assaltos por muitas vezes destruindo os mantimentos e matando e levando alguns homens brancos e escravos e assim muito gado vacum, em que tudo temos recebido muitas perdas. (ATAS, 1967:39)

O ataque de 9 de julho foi na verdade mais uma vingança contra os padres do que o propósito de destruir a vila. No depoimento de Anchieta na carta de 16 de abril de 1563 é evidente que um de seus catecúmenos saltou pela cerca da igreja, onde sabia estarem escondidas as mulheres, quando foi morto por uma flechada. Queria, com certeza, resgatar a índia que anos antes havia lhe sido negada por ser casado e com filhos.

Hans Staden, que esteve prisioneiro de índios nessa época permite explicar porque demoraram cinco anos para consumar o ataque contra os jesuítas. A sua descrição sobre a preparação para a guerra foi publicada em Marburgo, em 1557, um livro que o celebrizou como etnógrafo.

“Quando querem empreender uma expedição guerreira no território do inimigo, os chefes reúnem-se e discutem como isto deve ser feito. Informam os homens em todas as cabanas para que se armem e, nessa ocasião, mencionam uma espécie de fruta de uma árvore; partem quando a fruta amadurece, pois não conhecem nem os anos nem os dias. Para a partida também orientam-se de acordo com a desova de um tipo de peixe que em sua língua chamam de pirati.

“Para essa época preparam barcos e flechas e farinha grossa de mandioca. Depois consultam os pajés, os feiticeiros, para saber se irão vencer. Eles dizem que sim, mas mandam que atentem para os sonhos nos quais sonham com os inimigos. Se a maior parte sonha que vê a carne de seus inimigos assando, isso significa vitória. Mas se vêem a sua própria carne assando, isso significa nada de bom, e então devem ficar em casa.

“Mas, quando os sonhos lhes agradam armam-se, realizam em todas as cabanas grandes festas, bebem e dançam com seus ícones, os maracás, e cada um deles pede ao seu ícone que o ajude a capturar um inimigo.

“Então começa a expedição. Quando chegam perto das terras do inimigo, na noite anterior ao dia do ataque à área inimiga, os chefes ordenam que todos prestem atenção aos sonhos que tiverem durante a noite.

“Observam as cabanas de seus inimigos à noite. O ataque ocorre nas primeiras horas da manhã, com o clarear do dia. Atacam em meio a uma grande gritaria, martelam o solo com os pés e sopram em instrumentos feitos a partir de abóboras. Todos levam cordas para amarrar os inimigos. Enfeitam-se com penas vermelhas como sinal identificador frente aos contrários. (STADEN, 1999:104)

Historiadores e cronistas têm exagerado sobre o episódio do ataque aos jesuítas, às vezes de maneira fantasiosa e equivocada, como por exemplo o festejado autor paulista Affonso de E. Taunay.

quando guaianases, carijós e tupis, as hostes confederadas e temerosas de Jaguanharo e Arari, lhe deram, a 10 de julho de 1562, furibundo assalto.  (TAUNAY, 1920:8)

Na verdade, o ataque não passou de um ato vingativo por parte de um magote de dez ou vinte índios que foram derrotados por seus irmãos, primos e tios, os que acorreram à Vila São Paulo de Piratininga, na noite anterior, tremendo de frio como costuma ocorrer nos meses de julho em São Paulo.

Referências bibliográficas

ANCHIETA, Pe. Joseph de – Cartas – Correspondência Ativa e Passiva. São Paulo, Ed. Loyola, 1984   

ATAS DA CAMARA DA CIDADE DE SÃO PAULO 1562-1596. São Paulo, Arquivo Histórico, 1967   

LEITE, S.J., Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. (1553-1558) São Paulo. Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1958

STADEN, H. sec.16. Hans Staden: primeiros registros escritos e ilustrados sobre o Brasil e seus habitantes. São Paulo, Terceiro Nome, 1999  

TAUNAY, Affonso de E. São Paulo nos Primeiros Anos. Tours, Imprenta de E. Arnault et Cie. 1920

 

COMO CITAR ESTE TEXTO (ABNT 2017):

ROCHA FILHO, Gustavo. 9 de julho: Índios atacam os jesuítas de Piratininga. 2017. Disponível em: <https://historiadesaopaulo.com.br/9-de-julho-indios-atacam-os-jesuitas-de-piratininga/>. Acesso em: ___.