A verdade sobre a fundação de São Paulo

por Gustavo Neves da Rocha Filho

Na verdade nunca houve uma fundação de São Paulo. O que houve foi a criação de uma outra vila mandada fundar pelo primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Souza, na proximidade da povoação existente mencionada pelo aventureiro alemão, Ulrico Schmidl, na sua ida para a vila de São Vicente, em junho de 1553 (KLOSTER, 1942:86). De fato, subiu a serra Antonio de Oliveira, representante do donatário Martim Afonso de Souza, acompanhado do Provedor da Fazenda Real, Braz Cubas, e levantou o pelourinho, símbolo da autoridade, aos 8 de abril de 1553 dando-lhe o título de Vila de Santo André da Borda do Campo. (MADRE DE DEUS, 1953:122)  Em decorrência foi cercado de muros de taipa o recinto da nova vila, constituída a Câmara e eleitos juiz, vereadores, procurador do Concelho, escrivão, almotacéis, alcaide, aferidor e porteiro. A população da vila, enquanto durou, apenas sete anos, não passou de dez ou quinze famílias.         

Não confundir esta vila com a Cidade de Santo André, cujo município foi criado em 30 de novembro de 1938, desmembrado do de São Bernardo e cuja origem foi o povoado que cresceu ao lado da estação da estrada de ferro SPR, a inglesa, inaugurada em 1867.

A origem de São Paulo foi diferente. No ano de 1549 chegaram ao Brasil os primeiros seis padres jesuítas, incumbidos da catequização dos índios para melhor servir à colonização. Logo no ano seguinte foi enviado à Vila de São Vicente o padre Leonardo Nunes para fundar um Colégio. No mesmo ano subiu ao planalto de Piratininga, onde já existiam cerca de quinze pequenas povoações de portugueses, (LEITE, 1956:208) cada uma delas sede de fazendas onde a principal atividade era a criação de bois e vacas.

Nunes foi convidado pelos índios da então aldeia existente  para ensinar as primeiras letras e o catecismo. Desse convite resultou a ida para São Vicente de meninos filhos dos principais da aldeia. Três anos depois, como era difícil sustentá-los, pela falta de mantimentos, resolveu o Padre Manuel da Nóbrega enviá-los de volta ao planalto e aí abrir uma Casa de Meninos. Para isso, reuniu índios das três únicas aldeias existentes – a do cacique Tibiriçá, localizada no atual centro histórico da cidade de São Paulo, a do cacique Caiubí, senhor de Jeribatiba, às margens do  rio Pinheiros e a aldeia de Ibirapuera, que estava situada no terraço fluvial próximo ao córrego da Traição.

Nóbrega, no dia 29 de agosto de 1553, selecionou cinquenta meninos para a nova missão e determinou que dois padres residissem na aldeia de Tibiriçá. (LEITE, 1956:522). No ano seguinte inauguraram uma casa, fora da aldeia, para residência dos padres, e ao mesmo tempo escola, enfermaria, dormitório, refeitório, cozinha e despensa, com cerca de 100 metros quadrados.

Por isso, alguns dos Irmãos mandados para esta Aldeia no ano do Senhor de 1554, chegamos a ela a 25 de janeiro e celebramos a primeira missa numa casa pobrezinha e muito pequena no dia da Conversão de São Paulo e por isso dedicamos ao mesmo a nossa Casa (LEITE:1957:105).

Esta casa construíram-nos os próprios índios para nosso uso, mas agora preparamo-nos para fazer outra um pouco maior, de que nós seremos operários com o suor do nosso rosto e auxílio dos índios (LEITE, 1957:111)

A amizade entre índios e catequistas durou pouco tempo. Não podendo suportar a intromissão dos padres nos seus usos e costumes, principalmente contra a antropofagia e a poligamia, abandonaram a aldeia sem antes ameaçá-los com a promessa de os matar e de destruir a sua Igreja. (LEITE, 1957:366)

Por isso, sentindo-se abandonados e sem forças para resistir a qualquer ataque, o padre Manuel da Nóbrega, visando também o interesse dos moradores da vila de Santo André da Borda do Campo, que sofriam com a falta de água por estarem localizados em local impróprio, sugere a mudança dessa vila para junto deles, (LEITE, 1957:415)

A mudança foi autorizada pelo terceiro governador geral do Brasil, Mem de Sá. por provisão de 5 de abril de 1560  (MARQUES, 1954:241) Mudou a vila o nome para São Paulo do Campo, depois São Paulo de Piratininga e finalmente São Paulo.

Muito se tem escrito sobre a fundação de São Paulo, desde 1554, e o que mais se nota, ao longo do tempo, é uma variação de informações, ora por atribuições afirmadas sem fundamento seguro, ora por estéreis e vãs repetições. Além disso, as interpretações pessoais  têm levado a conclusões de belo efeito mas distantes da realidade.(ROCHA FILHO, 1992:s/p)

Assim, a primeira (des)contribuição é do próprio José de Anchieta, em 1584, já então ordenado Padre e Provincial da Companhia de Jesus no Brasil. Na sua Informação do Brasil e suas Capitanias, trinta anos depois, testemunha ocular da primeira missa, já não se lembrava muito bem se em 1554 haviam se dirigido para uma povoação nova, uma povoação nova mandada fazer pelo Padre Nóbrega ou para uma aldeia já existente. (ANCHIETA, 1964:29)

Dessa imprecisão surgiriam várias interpretações.

O padre Simão de Vasconcelos, ao publicar em 1663 a Crônica da Companhia de Jesus, fundamentado, como ele próprio afirma, em Anchieta, acrescenta por sua conta que os jesuítas escolheram o sítio para o seu colégio. (VASCONCELOS, 1977: 254)

Essa afirmação teria influenciado a interpretação dada por Frei Gaspar da Madre de Deus (1715-1780), nas suas Memórias para a História da Capitania de São Vicente, onde afirma que

não lhes agradando a povoação de Santo André, nem a Aldeia de Piratininga, escolheram um lugar eminente, entre os rios Tamanduateí e o ribeiro Anhangabau, três léguas afastado da dita povoação o qual lugar, hoje Cidade de São Paulo. está na latitude austral de 23( 33′ e na longitude de 331( e 25′ (MADRE DE DEUS, 1953:123)

Pedro Taques, genealogista e historiador, primo e amigo de Frei Gaspar, dá o padre Simão de Vasconcelos como sua fonte, ao publicar em 1775 e sua Crônica do Brasil (TAQUES, s/d: 73)

Repetindo Frei Gaspar e Pedro Taques, o cronista Luís dos

Santos Vilhena, na sua Bahia do Século XVIII, publicada em 1802 afirma que se ocuparam os padres na eleição de um sítio conveniente, onde no Campo fundassem o seu novo Colégio (VILHENA, 1969:769)

Com a chegada da família real ao Brasil, em 1808, e a abertura dos portos às nações amigas, começaram a surgir os livros descritivos da nossa terra, fruto de viajantes que aqui estiveram após aquele evento. O primeiro deles deles é, talvez, o do inglês John Mawe, que aqui esteve entre 1809 e 1810. Na sua descrição da fundação de São Paulo acrescenta que

A cidade foi fundada pelos jesuítas, provavelmente tentados pelas minas de ouro das proximidades, mais do que pela salubridade do clima (MAWE, 1978:63)

Saint-Hilaire, outro viajante, na sua primeira viagem a São Paulo, entre 1816 e 1822, foi um pouco mais fantasioso ao descrever o mesmo fato e até especulou sobre o desejo dos jesuítas de preferirem estabelecer-se

nas terras mais férteis, e em lugares mais altos, onde as maravilhas da Natureza se estendiam a perder de vista e incitavam as pessoas a elevarem seus pensamentos até o Criador. (SAINT-HILAIRE, 1976:22)

Manuel Aires do Casal, historiador oficial da Província e do Brasil, assim relata o fato na sua Corografia Brasílica, publicada em 1817:

Os jesuítas deram princípio a esta cidade no ano de 1552, com a fundação de um colégio. (…) Ao depois de seis anos, se lhe deu o foral de vila. Os seus primeiros povoadores foram uma horda de guaianás com o seu cacique Tibiriçá, que vivia na aldeia de Piratininga, junto à ribeira do mesmo nome, pouco distante da nova colônia (AIRES DO CASAL, 1945:163)

Ainda no século XIX,  o Governo da Província encarregou, por diversas vezes, seus mais ilustres colaboradores a discorrer sobre as coisas da terra, entre eles o Marechal Daniel Pedro Muller, em 1836, e Joaquim Floriano de Godoi, em 1875.

Daniel Pedro Muller escreveu que

Em 1553 mudaram-se alguns jesuítas para os campos de de Piratininga, que rodeiam a Cidade de São Paulo. Escolheram o outeiro em que está hoje situada a cidade, entre o ribeiro Anhangabau e o rio Tamanduateí, e dão princípio à povoação de São Paulo, convocando as Aldeias de Piratininga, das quais era chefe Tibiriçá, e de Geribatiba, cujo senhor era Cay-Ubi (MULLER, 1838:5)

Godoi assim descreve a fundação de São Paulo:

Chegando aos campos e Piratininga, ficaram deslumbrados pela magnificência daquela natureza, daquelas paisagens, daquela atmosfera transparente e límpida que deixa ver ao longe o recortado da serra da Cantareira e as caprichosas formas do Jaraguá (…) onde deviam fundar o seu convento. (GODOY, 1875:56)

Affonso d’ Escragnolle Taunay, outro “paulistanista” como seria denominado hoje, Diretor do Museu do Ipiranga, quando escreveu São Paulo dos primeiros tempos, publicado por editora francesa em  1920, afirmou enfaticamente que

Localizado, pelo excelente critério jesuítico, em magnífica posição no pequeno platô dominador da várzea, o São Paulo dos primeiros tempos não poude prescindir dos anteparos que o puzeram a coberto das agressões inopinadas dos selvagens, seus vizinhos imediatos. Assim, desde os primeiros dias, cercou-se de muros e estacada.(TAUNAY, 1920:7) 

Ernani Silva Bruno, pouco antes do IV Centenário da Cidade de São Paulo, publicou a sua já clássica História e Tradições da Cidade de São Paulo. Nela, procurou aceitar a opinião de Taunay, e encontrou justificativa numa carta de 1560 de Jorge Moreira, um dos primeiros povoadores, vereador em Santo André da Borda do Campo onde este escreve:

E assim mandou que a vila de Santo André, onde antes estávamos, se passasse para junto à Casa de São Paulo, que é dos padres de Jesus, porque nós lhe pedimos por uma petição, assim por ser lugar mais forte e mais defensável e mais seguro assim dos contrários como dos nossos índios, como por outras coisas. (BRUNO, 1953:73)

Trinta anos depois da comemoração do IV Centenário da Cidade de São Paulo começam os pesquisadores e acadêmicos a proceder a uma revisão da história.

Janice Teodoro da Silva em tese de doutoramento defendida na Universidade de São Paulo, em 1984, não aceitando nenhuma das (des)contribuições dos velhos historiadores e cronistas, escreve:

Com efeito, já existia uma aldeia no local, e a fundação representava apenas a intervenção institucionalizada do colonizador. (SILVA, 1984:25)

Por meu lado, acabo e finalizar uma pesquisa baseada na técnica da fotointerpretação sobre o aerolevantamento de 1962 onde foi possível localizar precisamente o lugar ocupado pelas três aldeias mencionadas pelos jesuítas do século XVI. Uma delas, situada num terraço fluvial à margem direita do rio Pinheiros antes da retificação do mesmo, deve ter sido berço onde nasceu Mbcy, a índia que conviveu maritalmente com João Ramalho durante quarenta anos. Seu casamento cristão não se realizou porque Ramalho jamais soube se sua mulher, abandonada grávida em Portugal, ainda vivia. Admoestada pelos jesuítas e separada de Ramalho, Mbcy, batizada com o nome de Izabel Dias,  viveu mais nove anos,

logo arrependida e conhecendo a maldade, em que havia vivido. perseverando em castidade, trabalhava por purgar seus pecados com muitas esmolas, que nos fazia. Agora, ferida de uma longa e incurável enfermidade, foi-se a Piratininga, onde, feita uma casa por seus filhos e escravos, entendia somente em coisas relativas à salvação de sua alma (…) até que espirou com ditoso fim, como é de crer. (ANCHIETA, 1984:157)

A carta de Anchieta é endereçada ao Padre Diogo Laines, Geral da Companhia de Jesus, em Roma, e tem a data de 1( de junho de 1560, donde se conclui que conhecendo Ramalho provavelmente aos 16 anos, viveu 65 anos. Outra conclusão: a aldeia onde nasceu existiria já em 1495. Mas isto é história para uma nova comunicação.

Referências bibliográficas

ANCHIETA, Pe José de.  Cartas : Correspondência ativa e passiva. São Paulo, Edições Loyola, 1984

ANCHIETA, José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584) São Paulo, Editora Obelisco, s/d

AIRES DO CASAL, Manuel. Corografia Brasílica. São Paulo, Edições Cultura, 1976

BRUNO, Ernani Silva. História e Tradições da Cidade de São Paulo. Rio de Janeiro, Livraria José Olímpio, 1953 vol. I

KLOSTER, W. e SOMMER, F. Ulrico Schmidl no Brasil Quinhentista. São Paulo, Sociedade Hans Staden, 1942

LEITE, S.J, Serafim. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil São Paulo, 1956, 1957, 1958  (3volumes)

GODOY, Joaquim Floriano. A Província de São Paulo. Rio de Janeiro, Diário do Rio de Janeiro, 1875

MADRE DE DEUS, Frei Gaspar.Memórias para a História da Capitania de São Vicente. São Paulo, Melhoramentos, 1953

MARQUES, Manuel Eufrásio de Azevedo, Apontamentos Históricos, Geográficos, Estatísticos e Noticiosos da Província de São Paulo. São Paulo, Martins, 1954

MAWE, John. Viagens ao Interior do Brasil. Belo Horizonte / São Paulo, Itatiaia / Edusp, 1976

MULLER, Daniel Pedro. Ensaio d’ Quadro Estatístico da Província de São Paulo. São Paulo, Tipografia Costa Siqueira, 1838

ROCHA FILHO, Gustavo Neves da. São Paulo: redirecionando a sua história. Tese apresentada à Universidade de São Paulo em 1992 para a obtenção do Título de Livre-Docente.

SAINT-HILAIRE, A.de. Viagem à Província de São Paulo (1816-1822). São Paulo, Edusp, 1976

SILVA, Janice Teodoro. São Paulo: 1554-1880. discurso ideológico e organização social. São Paulo, Ed.Moderna, 1984

TAUNAY, Affonso d’Escragnole. São Paulo nos Primeiros Anos Ensaio de Reconstituição Social. Tours, Imprenta de E. Arrault, 1920

TAQUES, Pedro. História da Capitania de São Vicente. São Paulo, Melhoramentos, s/d

VASCONCELOS, Pe, Simão. Crônica da Companhia de Jesus. Petrópolis, Editora Vozes, 1977

VILHENA, Luís dos Santos, A Bahia do Século XVIII. Salvador, Editora Itapuã, 1969, volume III

 

COMO CITAR ESTE TEXTO (ABNT 2017):

ROCHA FILHO, Gustavo. A verdade sobre a fundação de São Paulo. 2017. Disponível em: <https://historiadesaopaulo.com.br/a-verdade-sobre-a-fundacao-de-sao-paulo/>. Acesso em: ___.