As aldeias e trilhas tupiniquins no Planalto Paulista

por Gustavo Neves da Rocha Filho

el Campo de aqui doze legoas se quierem ayuntar
tres poblaciones para mejor aprender la doctrina
(LEITE: 1956:496)

 

O Padre Manuel da Nóbrega em carta ao Padre Luís Gonçalves da Câmara, datada “do sertão de São Vicente, último de agosto de 1553” diz textualmente que no dia anterior, festa da degolação de São João, fez “50 catecúmenos”, isto é, escolheu cinquenta crianças, entre meninos e meninas, para lhes ensinar a ler e escrever, e colocou dois Irmãos na aldeia para a doutrina deles.

Eram índios de três aldeias habitadas pelos tupi-guaranís, identificadas pelos historiadores como sendo Piratininga, chefiada pelo cacique Tibiriçá, Jurubatuba, chefiada pelo cacique Caiubi e Ibirapuera, cujo cacique não teve o seu nome conhecido. Sabe-se apenas que sua filha foi dada como esposa a um dos primeiros povoadores de São Paulo, Braz Gonçalves, nascido antes de 1552. (LEME, 1902:22)

A mais antiga delas estava localizada em um terraço fluvial na confluência de uma curva do Pinheiros, antes da sua retificação, antigamente denominado Jurubatuba, e o ribeirão Cupecê. Era uma aldeia circular com diâmetro de aproximadamente 150 metros, tendo a sua entrada principal no fim da atual rua Pássaros e Flores, antiga alameda das Acácias, travessa da Avenida Santo Amaro.

A segunda aldeia estava localizada também em um terraço fluvial, na confluência dos ribeirões da Traição e Uberaba, com certeza entre as duas atuais pistas do Aeroporto de Congonhas. Semelhante à primeira, ocupava um círculo de 150 metros de diâmetro. Parte da praça central da aldeia, um circulo com trinta metros de raio, ainda é visivel nas fotografias aéreas verticais de 1962 realizadas para o Governo do Estado.

A terceira aldeia, habitada pelos índios de Tibiriçá, depois das muitas especulações dos historiadores e cronistas, mostramos em 2009 que estava situada no interior do triângulo formado pelas ruas Direita, Quinze de Novembro e São Bento, atual centro histórico da cidade de São Paulo, também um terraço fluvial – impropriamente chamado de acrópole – na confluência do rio Tamanduateí com o ribeirão Anhangabaú, hoje canalizado.

A entrada principal desta aldeia estava no começo da rua Quintino Bocaiuva, trilha indígena que vinha do litoral pelas atuais ruas Rodrigo Silva, av. Liberdade, ruas Vergueiro, Domingos de Morais e avenida Jabaquara, até onde pudemos verificar na ocasião.

Tudo leva a crer que os ancestrais destas três aldeias habitavam desde tempos imemoriais as baixadas quentes e úmidas do litoral sul do Estado de São Paulo, desde Cananéia, Iguape, Peruíbe, Itanhaém até São Vicente.

Na zona costeira, onde se estabeleceu um gênero de vida misto de pesca e primitivas atividades agrícolas, mau grado a pobreza das terras, a existência de sambaquis está a exigir estudos mais profundos pelos arqueólogos.

A descoberta da localização da Aldeia de Piratininga só foi possível com a pesquisa exaustiva da vida e costumes do índio brasileiro desde os primeiros relatos publicados.

Assim, o piloto anônimo que fez parte da esquadra de Pedro Alvares Cabral, em carta publicada pela primeira vez em Veneza, por Montalbodo, disse que as suas casas são de madeira, cobertas de folhas e ramos de árvores, com muitas colunas de madeira no meio das ditas casas; e das ditas colunas até a parede colocam uma rede de tecido entrelaçado, na qual está um homem, entre duas redes fazem um fogo, de modo que em uma só casa estarão quarenta ou cinquenta camas. (CASTRO, 1988:103)

A carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da mesma esquadra, contém descrição mais detalhada de uma povoação distante légua e meia da costa: composta de nove ou dez casas, as quais eram tão compridas como a nossa nau-capitânea. Eram de razoável altura, de boas madeiras e cobertas de palhas. Todas se compunham de um só espaço, sem repartição de cômodos, com muitos esteios internos; e de esteio em esteio estava uma rede, atada com cabos em cada esteio, altas, em que dormiam. De baixo dela, para se aquentarem, faziam seus fogos. (CASTRO, 1988:90)

Américo Vespúcio na sua segunda viagem, de maio a setembro de 1502, explorou a costa do Brasil, desde o cabo de São Roque, no Rio Grande do Norte, até Cananéia, no litoral sul do Estado de São Paulo. Sobre os índios escreveu que habitam em comum, casas feitas à maneira de cabanas muito grandes, para gente que não possui ferro nem outro metal, pode-se dizer que suas cabanas são, na realidade, casas milagrosas, porque vi casas com 200 passos de comprimento e 30 de largura, habilmente fabricadas. (VESPUCIO,1987:712)

Antonio Pigafetta, navegante e escritor italiano também passou pelo Brasil, tendo saído de Sevilha a 10 de agosto de 1519. Relatou que os índios chegam ordinariamente até os cento e vinte e cinco anos. Andam completamente nus, tanto os homens como as mulheres. Suas habitações consistem em espaçosas cabanas. Uma destas pode abrigar algumas vezes até cem homens, com suas mulheres e filhos. (PIGAFETTA, 1985:57)

Hans Staden fez uma segunda viagem ao Brasil como arcabuzeiro da armada de Senabria partindo de Sevilha a 10 de abril de 1550, levando trezentas pessoas de equipagem, das quais cinquenta mulheres, entre casadas e solteiras. Um dos navios encalhou nas costas de Santa Catarina e um outro naufragou próximo a Itanhaém, único trecho do litoral que encerra encostas de granito (CAMPANÁRIO, 1980:33)

Um grupo partiu por terra para Assunção, outro para São Francisco do Sul, onde estabeleceram uma colônia. Staden e mais doze companheiros caminharam pela praia até São Vicente.

Hans Staden permaneceu no Brasil até 30 de outubro de 1554. Esteve prisioneiro dos índios tupinambás durante nove meses e meio e sobre as moradias desses índios escreve o seguinte: edificam suas habitações de preferência em lugares em cuja proximidade têm água e lenha, assim como caça e peixe. Poucas aldeias contam mais do que sete cabanas. Entre elas deixam um espaço livre, em que matam seus prisioneiros. (STADEN, 1974:155)

Gabriel Soares de Souza chegou ao Brasil em 1569. Foi senhor de engenho na Bahia. Era extremamente observador e devia ser homem de boas leituras. Seu livro, Tratado Descritivo do Brasil em 1587 não é somente uma das fontes mais valiosas, mas ainda um dos mais bem escritos. Sobre os índios observa que quando o principal assenta a sua aldeia, busca sempre um sítio alto e desabafado dos ventos, e que tenha água muito perto, e que a terra ao redor tenha disposição para fazerem suas roças . (SOUZA,[1957]:303)   

Decorridos três séculos e meio, isto é, no princípio do século XX etnólogos, antropólogos, arquitetos e indianistas começaram a fazer pesquisas entre as sociedades indígenas contemporâneas. As suas observações pouco diferem daquelas do século XVI, o que permite admitir a permanência dos costumes e, para o nosso caso, a forma das aldeias.

Curt Nimuendaju já estava no Brasil em 1905 onde realizou estudos etnográficos junto aos índios guaranís, caingang e outros grupos do Brasil meridional. Naturalizou-se brasileiro em 1922. Em 1946, após sua morte numa aldeia tikuna, foi publicada pela Universidade da Califórnia a sua principal monografia, The Eastern Timbira. Nesse texto diz que

            para a fundação da sua aldeia escolhem os Timbiras sempre um lugar que satisfaça as exigências seguintes:

            1) O chão deve ser plano, nos altos dos campos, em geral no fim de algum contraforte, no ângulo entre dois cursos de água confluentes;           

            2) O solo não deve ser pedregoso nem arenoso, mas formado de argila dura, pois sobre pedras e areia é impossível dansar com aquela perseverança que o cerimonial Timbira exige;       

            3) O lugar não deve ser demasiado distante da água, isto é, a mais de um quilómetro;

            4) Nas proximidades deve haver bastante mata ciliar para os roçados durante o espaço de uns dez anos. (NIEMUNDAJU, 1944:76)

Orlando Vilas Boas e seus irmãos Cláudio e Leonardo que viveram entre os índios do Xingu desde 1943 observam que as moradas dos xinguanos são construídas em torno de uma pátio circular. Ali se passam todas as festas e os ritos das cerimônias. É ainda nesse pátio, em frente às moradas, que sepultam seus mortos.. (VILAS BOAS: 1978:14)           

Cristina Sá, arquiteta e arqueóloga, conta que em todas as aleias do Alto-Xingu, a aldeia yawalapiti tem a forma de um círculo, com as casas dispostas na periferia e o espaço central constituindo-se em um grande pátio, no meio do qual fica a sepultura dos capitães.(SÁ:1988:108

Astolfo Araujo, Maryzilda Campos Couto e Lúcia Juliai, arqueólogos e geólogos do Departamento do Patrimônio Histórico do Município de São Paulo, criado em 1975, têm deselvolvido inúmeras pesquisas na cidade, notadamente as atividades dos habitantes em diversas casas bandeiristas protegidas pela legislação do tombamento.

Astolfo Araujo nos dá conta que uma urna funerária foi encontrada, em agosto de 1959, durante as obras de desaterro para a construção da fábrica da Kibon, próxima à Av. Roque Petroni Junior. (ARAUJO, 1995:61)

A Aldeia de Piratininga já devia existir ou estava em construção quando João Ramalho, em companhia do cacique Tibiriçá, desceu ao litoral por ocasião da chegada de Martim Afonso de Souza, em 1531.

Quando o Padre Manuel da Nóbrega fez 50 catecúmenos e colocou dois Irmãos para instruí-los, a aldeia teria pelos menos vinte e cinco anos. Mas não durou mais que outros três o quatro anos, isso porque muitos índios não suportaram a disciplina imposta pelos padres. Abandonaram a aldeia em 1560 e construiram grupos de choças nas imediações, em locais não determinados. Outros, que aceitaram os jesuítas foram para as Aldeais de Pinheiros e de São Miguel organizadas então, mesmos padres.

Estas duas aldeias devem ser chamadas de aldeamentos pois apresentam características bem diversas. Para destruir a cultura indígena, os jesuítas organizaram essas novas aldeias de sorte que casas individuais destinadas a uma família nuclear foram construídas nos três lados de uma praça quadrangular, ocupando o terceiro lado, em posição dominadora, a igreja.

A fotografia aérea permite estudar a superficie da terra e tudo o que sobre ela foi construido pelo homem. Das várias disciplinas que se utilizam dessa possibilidade estão as topográficas, geológicas, geográficas, econômicas, etnológicas, arqueológicas e até pre-históricas.

Esta técnica de trabalho resultou da conquista do ar pelo homem. Antes da primeira guerra mundial foram feitas algumas tentativas para observar sítios arqueológicos por balões, mas de uma maneira muito limitada.

De 1916 a 1919, o francês Léon Rey utilizou a fotografia áerea para o estudo das habitações antigas da Macedônia, e publicou suas observações em 1921. (LAMING, 1952:45)

Por sua vez, o inglês Beazeley observou e fotografou sítios arqueológicos, cidades antigas e redes de irrigação abandonadas na Mesopotâmia e publicou em 1919 os resultados obtidos (LAMING, 1952:45)

A utilização intensiva da aviação durante a Segunda Guerra Mundial resultou de enorme progresso no domínio da arqueologia aérea. Entre os resultados mais importantes podem ser citados as belas descobertas da inglesa Real Força Aérea na Itália.

Para citar um exemplo dessas descobertas a prospecção aérea do Apulie entre os rios Ofanto e Fortore prmitiu visualizar 150 a 200 sítios de habitações neolíticas, um importante sistema de centuriação romana até então não conhecida, com as vilas que lhe são associadas, mais de duas dezenas de fortificações medievais, sem contar com um grande numero de sítios antigos cuja identificação não poderia ser feita por um contato direto com o terreno. (LAMING, 1952:46).

Jean Baradez, coronel da aviação, foi o pioneiro da arqueologia aérea. Foi observador aéreo durante a guerra de 1914-1918. Ligado em 1946 à direção das Antiguidades de Argélia colonial francesa efetuou prospecões sistemáticas e aprofundadas em Tipasa, uma vila antiga do Mediterrâneo. Ao contrário de seus predecssores que utilizavam fotografias aéreas inclinadas de baixa altitude, Baradez usou fotografias verticais de grande altitude de maneira a cobrir enormes áreas do terreno. Seu mais importante trabalho, Fossatum Africa, foi publicado em Paris, 1949. (BURGER, 1957:12)

Da guerra 1939-1945 sobraram milhares de fotografias áereas produzidas pelos estados beligerantes, quando foram fotografadas extensas faixas do terreno, superpondo as fotografias 60% das anteriores, o que permitia a observação do relevo do solo através de pares estereoscópicos. (LAMING, 1952:46).

Para descobrir as duas outras aldeias situadas no planalto paulistano utilizou-se fotografias do Levantamento Aerofotográfico de 1962 realizado para o governo do Estado de São Paulo pela empresa Aerofoto Natividade Ltda.

Sabia-se pela leitura das cartas dos jesuítas datadas de 1549 a 1556 que além da Aldeia de Pirtatininga esistiam outras duas, uma denominada Jaraibatiba, que os historiadores procuraram localiza-la no atual bairro de Santo Amaro, e outra distante duas milhas desta.

Para a realização da pesquisa foram utilizadas cópias das fotos do referido levantamento, cobrindo grande área do terreno, desde o centro da cidade até às margens do Rio Pinheiros, abrangendo uma superfície de cerca de 600 km quadrados.

Conhecidas as constantes na implantação das aldeias, isto é, um terraço fluvial situado na confluência de dois rios, em terreno argiloso próximo a matas ciliares e a solos próprios para as suas roças, como também a característica de suas trilhas procuramos iniciar a pesquisa com a determinação da rede de drenagem natural de toda a área, o que demandaria muito trabalho.

Conhecendo o traçado da trilha indígena que chegava às portas da Aldeia de Tibiriçá, descoberta também por estudos fotoanalíticos quando descobriu-se os seis caminhos quinhentistas mencionados em atas da Câmara da Vila de São Paulo aquela trilha foi, então, percorrida outra vez com o procedimento fotoanalítico.

Essa trilha transformou-se no decorrer do tempo em ruas e avenidas do atual traçado urbano da cidade. Percorrendo-a com o estereoscópio de espelhos sobre os pares de fotos, encontrou-se a exatos dez km da Aldeia de Tibiriçá um terraço fluvial significativo, sobre o atual Aeroporto de Congonhas, próximo à confluência dos córregos da Traição e Ribeirão Uberabinha.

Pesquisando na internet, o eng. Eugênio Neves da Rocha descobriu uma fotografia aérea de baixa altitude, inclinada de 45°, tomada no ano de 1940 pela ENFA-Empresa Nacional de Fotografia Aérea, onde aparece em primeiro plano o Campo de Congonhas, inaugurado por uma empresa privada, a Auto-Estrada, em 1934.

A fotografia da ENFA mostra claramente a situação de uma aldeia no ponto mais alto do terreno, onde já se demarcara uma pista de pouso e decolagem com 300 m de comprimento, sem nenhuma modificação do solo a não ser o desmatamento. Essa pista decaia para os dois lados, sendo que anos depois o Governo do Estado construiu o atual aeroporto com o aterro efetuado nas duas extremidades da mesma, ampliando-a para os atuais 1800 metros.

Examinando a foto vertical aérea de 1962 encontraram-se vestígios da antiga aldeia exatamente onde o terreno não foi modificado nem onde foram construidas as duas pistas de pouso e decolagem. Entre estas o terreno encontra-se no estado natural em terra que se transforma em lamaçal por época das chuvas e onde cresce apenas uma vegetação rasteira. É perfeitamente visivel parte do pátio cicular da aldeia que aí existiu, cuja circunferência permite estabelecer em 30 m o raio do círculo.

Por ocasião das obras de terraplanagem para a construção das atuais pistas, em 1940, o Brigadeiro José Jorge Abadalla, na ocasião Tenente Aviador, que acompanhou as obras, lembra que foi encontrado um “pote de barro com ossos dentro” e que o local parecia um cemitério de índios tal a quantidade de ossos.

Pesquisas nas atas da câmara da Vila de São Paulo e nos textos das cartas dos jesuítas e permitiram reconhecer a aldeia como sendo a Aldeia de Ibirapuera.

Na ata da câmara da Vila de São Paulo do dia 28 de novembro de 1598, lê-se que mandam levantar a forca no caminho do Ibirapuera o que confirma o fato de que a trilha indígena percorria a atual Av. Liberdade.

Na Genealogia Paulistana, de Silva Leme, lê-se que Braz Gonçalves casou-se com a filha do cacique da Aldeia de Virapuera, batisada com o nome de Margarida Fernandes, onde se descreve em seguida a descendência de um dos primeiros povoadores da Vila de São Paulo de Piratininga.(LEME, 1902:22)

A carta trimestral do José de Anchieta, datada de agosto de 1556, diz textualmente que encontra-se agora entre eles o Padre Luís, empenhando-se com todo o cuidado não só aí mas n’outra Aldeia, distante duas milhas, lançando os fundamentos da fé, visitando essa aldeia frequentemente mas vivendo em Jaraibatiba. (LEITE,1957:509)

Retornando pela trilha indígena já descrita, desde o ponto onde ela encontra a Via Anchieta na cidade de São Bernardo encontrou-se uma derivação à esquerda demandando o divisor de águas dos ribeirões Água Espraiada e Cupecê, hoje canalizados.

Percorrendo-a, cruzamos a rua Santo Amaro e penetramos numa ruela estreita e angulosa, antiga Alameda das Acácias, hoje chamada rua Pássaros e Flores. Aí encontrou-se, na análise estereoscópica, o sítio ideal para uma aldeia indígena.

Essa aldeia estaria situada onde hoje existe uma indústria instalada, envolvendo um círculo de 150 m de diâmetro em terreno absolutamente plano. O encontro de três recipientes, um deles servindo de urna funerária, com restos de ossos e dentes soltos e vasilhames de argila cozida no desaterro para a construção da fábrica da Kibon, em 1959, confirma de forma segura a existência de uma aldeia indígena nesse local. (ARAUJO, 1995:61)

Caiubi, Senhor de Jurubatuba, o índio batizado João, falecido com mais de cem anos em julho de 1561, muito celebrado pelos jesuítas foi o cacique dessa aldeia. Supondo que ele tivesse trinta anos quando se tornou cacique, a sua aldeia já existiria em 1491 e aí deve ter nascido Tibiriçá, seu filho. (LEITE, 1958:372)

O arqueólogo Astolfo Araujo, já mencionado, afirma que os índios de origem tupi que moravam na região hoje ocupada por São Paulo costumavam enterrar seus mortos em posição fetal, dentro de grandes vasilhames de argila cozida denominadas urnas funerárias. Durante a ocupação da cidade, ao longo dos séculos, alguns desses vasilhames foram encontrados. (…) No dia 18 de março de 1920 foi a vez do bairro da Penha; trabalhadores cavando uma trincheira para a colocação de tubulação entre as ruas Rodovalho Junior e Capitão José Cesário, encontraram um precioso vaso mortuário, que era visivelmente feito com barro turfoso da várzea do Tietê, com restos de esqueleto. (ARAUJO,1995: 61)

Tendo em vista essa informação visitou-se o local e verifico-se que se tratava de um terraço fluvial debruçado sobre um braço do rio Tietê, braço ainda visivel nas fotografias áreas de 1962, não obstante a existência do canal já retificado do rio e suas vias marginais. A aldeia estaria situada à montante da confluência do ribeirão Aricanduva com o rio Tietê. de um lado, e do outro junto a um curso d’ägua hoje canalizado sob a rua Valentina Piva.

Esse terraço é todo plano e está cerca de 15 ou 20 metros acima do nível do rio Tietê e apresenta todas as características exigidas pelos índios para a localização de suas aldeias, além de ser muito semelhante ao local da aldeia de Piratininga, no centro histórico de São Paulo.

Pesquisando as cartas dos primeiros jesuítas do Brasil encontrou-se uma única referência que leva a supor a inexistência da aldeia em meados do século XVI. Trata-se do relatório quadrimestral do Irmão José de Anchieta ao Padre Diego Laynes, datado de São Vicente, 30 de julho de 1561, na qual menciona a guerra dos moradores de Pirataininga contra os tamoios do vale do rio Paraíba.

            Foi com eles um sacerdote para lhes dizer missa, predicar e levar à frente a bandeira da Cruz, e um Irmão intérprete. (…) Seu caminho é desta maneira. Vão primeiro por um rio algumas jornadas em canoas tão grandes que cabem vinte e vinte e cinco pessoas com seu mantimento e armas. (…) Chegados ao porto do primeiro rio, levam as canoas às costas por quatro ou cinco léguas de bosques, até chegar a outro rio que está já na terra dos inimigos. (…) E lhes deu N. Senhor grande vitória destruindo o lugar sem escapar mais que um só, (…) E parecendo que muitos desses índios que morreram foram flechados, dos portugueses feriram quase todos e mataram três. (LEITE, 1958: 378)

As cartas quadrimestrais sempre muito detalhadas não mencionam a existência de nenhuma aldeia no caminho, embora subindo o rio Tietê passaram junto ao terraço fluvial onde foi encontrada a urna funerária em 1920. A conclusão é que essa aldeia já não existia. Semelhante à aldeia de Jurubatuba, que durou meio século, esta aldeia abandonada teria sido extinta no comço do século XVI e sua origem data provavelmente do ano de 1450.

As fotos aéreas do levantamento de 1962 mostram que os índios desta aldeia desaparecida vieram do Lagamar de Santos subindo pela crista do morro do Quilombo, divisor das bacias dos rios Jurubatuba e Quilombo, num percurso de 20 Km até o pico, a 1.000 metros de altitude, descendo depois pelo espigão divisor das nascentes dos rios Taiçupeba Açu e ribeirão Guaió, de um lado, e do outro as nascentes do ribeirão Pires, prosseguindo pela crista do morro que deixa o ribeirão Aricanduva à esquerda, até o terraço fluvial sobre margem do rio Tietê, onde estabeleceram a sua aldeia.

É significativo que ao pé do morro do Quilombo foi construído o primeiro engenho de cana instalado em São Vicente, denominado Madre de Deus, logo após a instalação da vila de São Vicente por Martim Afonso de Souza, em 1532.

Por esse caminho do morro do Quilombo devem ter subido ao planalto os primeiros homens brancos, onde se instalaram. E prosseguindo pela trilha que então se dirigia para a aldeia de Jurubatuba poderiam chegar ao Paraguai pois de Assunção vinham muitos castelhanos até o porto de São Vicente.

Tomé de Souza, o primeiro Governador Geral de Brasil, proibiu o trânsito por esse caminho, como se refere em carta datada de 1° de junho de 1553 ao Rei de Portugal, D.João III:

            achei que os de São Vicente se comunicavam muyto com os castelhanos, e tanto que na alfandega de V.A. rendeo este ano passado cem cruzados de direitos de cousas que os castelhanos trazem a vender. (…) Ordenei com grandes penas que este caminho se evitasse até o fazer saber a V.A., e por nisto grandes guardas. (LEITE, 1956:485)

A preocupação do governador era de que se Assunção viesse a pertecer a Portugal, pelo deslocamento do meridiano de Tordezilhas, do outro lado, no antipoda, as Molucas parassariam para o domínio da Espanha, o que constituiria grande prejuizo para o Reino.

Nesse mesmo mês de junho de 1553 chegou a São Vicente, vindo do Paraguai, depois de uma caminhada de seis meses, o alemão Ulrico Schmidl para embarcar no dia 24 do mesmo mês com destino a Portugal, onde chegaria em 30 de setembro. (KLOSTER, 1942:79)

O relato de Schmidl é muito importante porque permite confirmar o traçado da trilha dos tupiniquins, no planalto paulista, encontrado pela fotointerpretação, assim como sugerir a localização do povoado de João Ramalho e, talvez, da efêmera Vila de Santo André da Borda do Campo, criada por Mem de Sá nesse mesmo ano de 1553. Faz parte do texto de Schmidl um de seus últimos parágrafos:

            depois de um mês em caminho topamos com uma grande localidade chamada Schrebethuba. (…) Nesse lugar demoramos três dias e estávamos muito cansados do caminho, e também já não tínhamos o que comer, sendo nossa alimentação, na maior parte, nada mais que mel. (…) Rumamos, após, para uma localidade pertencente a cristãos. O chefe que estava ausente na vila chamava-se João Ramalho. (…) Agora devo dizer também que seus filhos, nos receberam bem a nós cristãos, mas não obstante isso, tivemos maior receio entre eles que entre índios. (…) Seguimos então para uma vila que se chama São Vicente, havendo entre o povoado supra-mencionado e esta cidade um caminho de vinte léguas. (KLOSTER, 1942: 86)

É provável que com a ocupação dos campos que constituem a bacia do rio Tamanduateí pelos portugueses, em algum momento, a escalada da serra pelo morro do Quilombo tenha sido abandonada e trocada pela serra do Perequê, com uma redução de cerca de seis léguas das vinte mencionadas por Schmidl.

Numa de suas cartas, Anchieta refere-se a um caminho mui áspero e creio que o pior que há em muita parte do mundo (ANCHIETA, 1984:87). O Padre Fernão Cardim que o percorreu em 1585 acrescenta que o caminho é tão íngreme que às vezes íamos pegando com as mãos. (CARDIM, 1980:172)

O novo caminho, vencida a subida da serra, obrigava a travessia dos rios Pequeno e Grande, formadores do rio Pinheiros, ou Jurubatuba como era então denominado. O Padre Cardim embarcou neste rio indo pelo mesmo até o atual bairro de Santo Amaro, uma via fluvial que ainda foi usada para transposrtar peças de artilharia no governo de Morgado de Mateus, em meados do século XVIII.

Estas descobertas, com os recursos da fotointerpretação, coloca em dúvida a consagrada interpretação de que a Trilha do Tupiniquins, assim denominada pelos historiadores, chegasse ao planalto subindo pelo vale do rio Mogi, desde a sua margem direita, passando depois para margem esquerda até atingir o alto da serra e daí percorrer o vale do rio Tamanduateí até o sítio onde hoje está o centro histórico de São Paulo.

Segundo o eng. Gentil de Moura, este caminho pelo vale do rio Mogi foi sugerido por Cândido Mendes, autor de cartografia da região, em decorrência de uma interpretação equivocada de um texto de Frei Gaspar da Madre de Deus, sugestão aceita posteriormente por muitos historiadores e até geógrafos. (MOURA, 1912:14)

Existe atualmente, muito visível nas fotografias aéreas de 1962, um caminho com as mesmas diretrizes da que foi proposta por Cândido Mendes, com largura de oito metros e sem as características das trilhas indígenas por se tratar de trajetos em fundos de vales e meia encosta, sempre desprezados pelos índios. Este caminho não está representado na Planta de 1906 da Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo nem é mencionado por Capistrano de Abreu, em 1924, autor de Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil.

Esse autor publicou na Revista do Brasil, n° 85, Ano VIII, volume XXII, de janeiro de 1923 um texto onde considera o caminho do Perequê já de interesse dos primeiros exploradores do litoral.

            Piratininga foi a herdeira dos Tupiniquins, das tribos talvez anteriores que deixaram nos sambaquiís o único vestígio da sua passagem. As gargantas do Perequê e Mutinga apontavam aos navegantes desde o fundeadouro as entradas para os campos de acima da Serra. (ABREU, 1975:154)

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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COMO CITAR ESTE TEXTO (ABNT 2017):

ROCHA FILHO, Gustavo. As aldeias e trilhas tupiniquins no Planalto Paulista. 2018. Disponível em: <https://historiadesaopaulo.com.br/as-aldeias-e-trilhas-tupiniquins/>. Acesso em: ___.