O interesse de João III pela Cia de Jesus

por Gustavo Neves da Rocha Filho

Portugal, seu povo e seu rei estiveram, à época manuelina, quando se descobriu o Brasil, completamente absorvidos pelo opulento e relativamente fácil comércio com as Índias, cujo caminho marítimo Vasco da Gama havia descoberto em 1498. Mas o decréscimo desse comércio prejudicou a situação econômica e financeira do Reino a ponto de D. João III ser obrigado até mesmo a abandonar algumas praças fortes no norte da África, duramente conquistadas no século anterior.

Era também escassa a população de Portugal e dificílima a colonização do Brasil, que ainda não tinha dado nada, mas prometia grandes maravilhas. As lendas sobre minas e tesouros alucinavam, em toda a parte, ávidos europeus. Ninguém podia distinguir o que de real haveria nas ficções criadas e ampliadas por imaginações desvairadas. Algumas dessas lendas corriam soltas e desordenadas e foram se condensando até se cristalizaram no “El-Dourado”, a sonhada e fabulosa terra onde haveriam montanhas de ouro, prata e pedras preciosas e que poderiam ser encontradas no Peru, denominação geral das Índias de Espanha na América recém-descoberta.

Frotas de corsários franceses e ingleses atacavam os galeões carregados de ouro que partiam da América Espanhola. Os espanhóis conquistadores penetravam o interior do continente americano pelo centro, navegando os grandes rios, e bem poderiam apossar-se das terras que pertenciam a Portugal, onde também existiriam minas de ouro. A geografia americana era desconhecida e o tratado de Tordesilhas, que estabelecia os limites entre as terras de Portugal e Espanha, bem fraco.Os franceses, por outro lado, começavam a se estabelecer nas costas do Brasil e a negociar com os índios o pau-brasil muito usado em tinturaria, na Europa.

D. João III decidiu, também, possuir tais minas e julgou indispensável cuidar da terra descoberta por Cabral, para não a perder. Convenceu-se de que não bastava cravar cruzes e padrões nas terras descobertas para assegurar a sua posse e entendeu de mudar a política do reinado anterior. Mandou, então, gente para as costas do Brasil para nele firmar a sua posse, na esperança de encontrar ouro e pedras preciosas. O primeiro passo, após algumas expedições de reconhecimento ao longo da costa, foi a organização, em 1530, por conta da fazenda real, de uma esquadra de cinco navios, equipada por cerca de 400 homens, inclusive capitães, fidalgos, pilotos, mestres, guarnição militar, pessoal de intendência e alguns degredados. Martim Afonso de Souza, então com 31 anos, foi nomeado capitão dessa esquadra e Pero Lopes de Souza, seu irmão, também capitão, foi o autor do “Diário de Navegação” que tornou conhecida a expedição. Durou ela de 3 de dezembro de 1530, data da sua partida de Lisboa, até maio de 1533, data do seu regresso.

A esquadra de Martim Afonso de Souza chegou ao cabo de Santo Agostinho, nas costas de Pernambuco, a 31 de janeiro de 1531 e, encontrando navios franceses, deu-lhes combate, aprisionando três: um foi queimado, outro, enviado ao Reino carregado de pau-brasil e o terceiro, incorporado à frota. Rumando para o sul foram acolhidos na Bahia por Diogo Álvares Correia, o “ Caramuru”. Depois, no Rio de Janeiro, onde se demoraram, fizeram explorações terra a dentro. Em Cananéia, encontraram um português conhecido por “Bacharel”, degredado que aí vivia.  Continuando para o sul foram vítimas de tempestades e o navio de Martim Afonso naufragou; Pero Lopes continuou navegando até o Rio da Prata e Martim Afonso retornou para o norte, até São Vicente, onde fundou a Vila. (CORTEZÃO, 1958:588-590

Em São Vicente, Martim Afonso encontrou Antônio Rodrigues e João Ramalho, portugueses que já estavam na terra há longos anos, aliados e genros de Piquerobi e Tibiriçá, caciques dos índios guaianazes que aí viviam. Aí plantaram as canas-de-açúcar trazidas pela esquadra, aí deixaram o gado e os colonos e a povoação prosperou. Construíram logo um engenho, denominando-o Madre de Deus, nome depois mudado para Nossa Senhora das Neves. (FRANCO, 1958:577)

Em Portugal, antes mesmo do regresso da armada de Martim Afonso de Souza, D. João III decidiu dividir o Brasil em Capitanias Hereditárias, fazendo doações a alguns dos nobres que para aqui tinham vindo, entre eles Pero de Gois e seu irmão, assim como ao próprio Martim Afonso de Souza e seu irmão Pero Lopes de Souza.

Pero de Gois e seu irmão partiram para o Reino cerca de dez anos depois, em 1542, para obter confirmação de suas terras e firmar contrato com Martins Ferreira para o comércio com os índios, bem como para a vinda de artífices e colonos para o seu engenho. Regressando a São Vicente em 1544, Pero de Gois encontrou abandonadas as suas terras, entregues a um feitor que aqui deixara, mas conseguiu recompor sua empresa. Infelizmente, dois anos depois, segundo uma carta sua de 29 de abril de 1546, devido a uma disputa com Henrique Luiz, da vizinha Capitania de Vasco Fernandes Coutinho, teve que fugir para a Metrópole. (FRANCO,1958:679)

Disputas como essa e a difícil cooperação entre as Capitanias tornava precária a defesa comum, tanto contra elementos indígenas como contra corsários que atacavam as instalações dos colonos e tentavam estabelecer-se no extremo norte, e no sul, frequentavam as costas do Cabo Frio e do Rio de Janeiro. Em caso de naufrágio, os selvagens matavam quase sempre quem lhes caía nas mãos, como foi o caso do donatário Francisco Pereira, na Bahia, em fins de 1546. A sua capitania reverteu à Coroa e nela iria fundar D. João III a Cidade do Salvador, sede do primeiro Governo Geral do Brasil.

Na nova forma de governo, Pero de Gois foi nomeado Capitão da costa brasileira, por três anos, com ordenado e concessão de licença para colher dois mil quintais de pau-brasil na sua Capitania. Volta assim ao Brasil, em 1549, trazendo o primeiro governador geral, Tomé de Souza, parente e amigo de Martim Afonso de Souza.

O Regimento de Tomé de Souza, dado por D. João III, continha as diretrizes principais do Governo Geral e como plano político hierarquizava a obra de civilização imaginada para o Brasil. Priorizava, em primeiro lugar, “o serviço de Deus e o exaltamento da nossa santa fé”; em segundo, “o serviço meu e proveito dos meus reinos e senhorios”; em terceiro, “o enobrecimento das Capitanias e povoações das Terras do Brasil e o proveito dos naturais dela”. (LEITE, 1956:5)

O interesse de D. João III pela Companhia de Jesus nasceu, então, de uma feliz coincidência: o da fundação dessa Ordem e a necessidade de missionários para “o serviço de Deus”.

O fundador da Companhia de Jesus nasceu em 1491, em Loyola. Tentou a carreira eclesiástica, que abandonou, teve vida agitada e entrou para a carreira de armas. Com 30 anos foi ferido no cerco de Pamplona. Durante a convalescença começou a escrever os “ Exercícios Espirituais” e dezoito anos após, o seu espírito religioso aliado ao belicoso iria dar origem a uma nova Ordem Religiosa. Quando estudava no Colégio de Santa Bárbara, Inácio de Loyola conheceu o Padre Pedro Fabro e os estudantes Francisco Xavier, Simão Rodrigues e outros. Juntando-se todos, em Veneza, ordenaram-se sacerdotes em 24 de junho de 1537. A 14 de maio de 1539, fundaram a Companhia de Jesus, cuja “Fórmula de Instituto” foi aprovada pelo Papa Paulo III justamente quando D. João III pedia missionários para a Índia. Com esse fim, em março de 1540, seguem para Lisboa os Padres Simão Rodrigues e Francisco Xavier. Foram tratados pelo Rei e por toda a corte com a maior benevolência. Decidiu-se que um fosse para as missões da Índia e outro ficasse no Reino a fim de preparar futuros missionários. Partiu Francisco Xavier, em 1541, ficou Simão Rodrigues.

Simão Rodrigues e D. João III fundaram o Colégio de Coimbra, aplicando-lhe, com o beneplácito da Santa Sé, vastas rendas eclesiásticas. Deste Colégio de Coimbra iriam sair o Padre Manuel da Nóbrega e todos os primeiros Jesuítas do Brasil. (5)

A primeira Missão Jesuítica foi trazida para o Brasil em 1549 de maneira que pertence a D. João III a honra de iniciar as missões ultramarinas da Companhia, tanto para o Oriente como para o Ocidente, uma e outra sob bandeira portuguesa, patrocinada por El-Rei para cumprimento do seu dever evangelizador. (LEITE, 1956:29)

“porque o principal intento, como sabeys, asy meu como d’El-Rei meu senhor e padre, que santa glória aja – D. Manuel I, Rei de Portugal, falecido no dia 13 de dezembro de 1521- na impresa da India e em todas as outras conquistas que eu tenho, e se sempre manteverem com tantos perigos e trabalhos e despesas, foy sempre o acrecentamento de nossa santa fé catholica”(LEITE, 1956:29)

Como escrevia D. João III a 4 de agosto de 1539 a D. Pedro Mascarenhas, que estava em Roma, Embaixador de Portugal e cuja parente, D. Leonor de Mascarenhas, que lá vivia, Inácio de Loiola a chamaria de “mãe da Companhia”.

Para iniciar a catequese no Brasil, embarcaram, na mesma armada do Governador, os Padres Nóbrega, Leonardo Nunes, Juan Azpicuelta Navarro e Antônio Pires e os Irmãos Vicente Rodrigues e Diogo Jácome, chegando à Bahia a 29 de março de 1549. Mais tarde vieram outros: em 1550, chegou ao Brasil a segunda expedição com quatro padres; e em 1553, a terceira, com três padres e quatro irmãos, que também depois se ordenaram. Assim, com outros que ingressaram na Companhia de Jesus aqui mesmo, ao constituir-se a Província do Brasil, em 1553, o número deles era de cerca de 30, distribuídos por Pernambuco, Porto Seguro, Espírito Santo e São Vicente. Não era um número muito grande pois basta dizer que ao falecer Inácio de Loyola, em 1556, a nova Ordem Religiosa por ele criada 15 anos antes, contava mais de um mil padres e irmãos, distribuídos, fora de Roma, em doze províncias: Portugal, Espanha, Goa, Itália, França, Brasil, Sicília, Castela, Aragão, Andaluzia, Alemanha Superior e Alemanha Inferior.

Ao contrário do isolamento que somos levados a supor, os jesuítas mantinham, entre eles, estreito contato em todos os quadrantes do mundo quinhentista: as principais cartas de Nóbrega do ano de 1549, depois de lidas em Portugal, já estavam em Roma no fim desse mesmo ano, sendo distribuídas pelas Casas e Colégios europeus, e por mar chegando a Goa e dali até os confins do Oriente, em navios que partiam de Lisboa. (LEITE, 1956:53)

Como os negócios das Missões ultramarinas eram tratados em Lisboa, o Provincial de Portugal tinha a faculdade de abrir as cartas, menos as destinadas exclusivamente ao padre Geral. Antes de remetê-las a Roma era preciso copiá-las, as de notícias para as repartir pelas Casas e Colégios, e as de negócios, para tratar com os ministros régios e outros envolvidos. As cópias multiplicavam-se com o aumento constante das missões, tanto de cartas que chegavam à Europa, como de cartas que de lá se enviavam; e da Índia pediam que não se enviassem uma só cópia, “ mas por quatro vias”, isto é, por quatro navios diferentes, “ porque indo por tres acaece no llegar allá ninguna” (LEITE, 1956:57)

Porisso, as cartas passaram a ser impressas. Selecionavam-se cartas antigas e incluíam-se outros textos, como por exemplo a “Informação das Terras do Brasil”, de Nóbrega, de 1549.

O efeito e estima geral dessas cartas e informações não ficou só entre os da Companhia, mas também entre o povo. As “ Cartas del’India di Portogallo” entravam nas casas de gente culta como novela ou jornal. Quando Nóbrega faleceu, em 1570, a sua “Informação das Terras do Brasil” tinha nada menos que seis edições, traduzida em espanhol, italiano e latim; e mais tarde, em 1586, também se imprimiu em alemão. (LEITE, 1956:60)

Publicadas desde 1551, o mais antigo volume das cartas é o que está na Biblioteca de Lisboa, contendo seis delas. Em 1553 foram publicadas 14 cartas; em 1559, 22; e em 1562, 50 cartas, dez das quais do Brasil.

A “Informação das Terras do Brasil” apareceu pela primeira vez no Brasil em 1835, nos “Annaes do Rio de Janeiro”, de Silva Jardim, alentada obra de história, cobrindo desde a descoberta do Brasil até a chegada de D. João VI. Surge em seguida a “Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro” que publicou, de 1849 a 1918, em diversos volumes, doze cartas dos jesuítas,  todas anteriores a 1552. Uma edição da Imprensa Nacional, de 1887, contendo 63 cartas, perdeu-se quase toda em incêndio na própria editora. Em 1931, a Academia Brasileira de Letras e Afrânio Peixoto, nesse mesmo ano, publicaram outra vez as cartas da edição perdida no sinistro. Em 1934, entrou em cena o Padre Serafim Leite, S. J. que seria o grande artífice da História dos Jesuítas do Brasil; os dez volumes que formam a sua obra foram publicados entre 1938 e 1950. Além de numerosas monografias que escreveu e publicou, Serafim Leite foi incumbido pelo Padre Geral de iniciar a série brasileira na “Monumenta Historica Societatis Iesu”. O primeiro volume, coincidindo com o volume 79 da série geral, foi publicado pela Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, em 1956. Contém 75 cartas do período de 1538 a 1553; um segundo volume publicado pela Comissão, em 1957, contém 70 cartas e o terceiro e último volume, de 1958, contém 74 cartas que vão até 1563. São ao todo 219 cartas, cuja leitura permite formar uma ideia um pouco diferente daquela consagrada e repetida por todos quanto escrevem sobre a fundação de São Paulo.

Referências bibliográficas

CORTEZÃO, Jaime – “Martim Afonso de Souza e a Fundação de São Paulo”. Ensaios Paulistas. São Paulo, Anhambi, 1958

FRANCO, Francisco de Assis Carvalho – “Os 32 Companheiros de Martim Afonso e a Cidade de São Paulo “. Ensaios Paulistas. São Paulo, Anhambi, 1958

LEITE, S. J., Serafim –  Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. (1538-1553). São Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1956 Vol. I 

 

COMO CITAR ESTE TEXTO (ABNT 2017):

ROCHA FILHO, Gustavo. O interesse de João III pela Cia de Jesus. 2018. Disponível em: <https://historiadesaopaulo.com.br/o-interesse-de-joao-iii-pela-cia-de-jesus/>. Acesso em: ___.