Os caminhos quinhentistas de São Paulo

por Gustavo Neves da Rocha Filho

Quando a Vila de São Paulo do Campo foi instalada, com a extinção e transferência da Vila de Santo André da Borda do Campo esta possuia pelo menos dezesseis moradores pois foi esse o número de assinaturas registradas no dia 31 de março de 1558  na última ata da sua câmara.

A carta de 20 de maio de 1561 que a Câmara de São Paulo enviou à D. Catarina, Rainha de Portugal, solicitando ” nos faça mercê de nos mandar prover de armas, a saber: duas duzias de espingardas e uma duzia de bestas, e dois pares de berços com a polvora necessária, e outrossim duas duzias de espadas que sejam boas, e estas armas serão entregues a esta Câmara  (…)  nos determinamos a ir todos à guerra não chegando ainda a trinta homens brancos. e conosco irão outros trinta mancebos mestiços da terra. “

 Os primeiros trinta moradores do planalto ocupavam áreas dos atuais bairros do Ipiranga, Pinheiros, Ibirapuera, Santo Amaro, Braz, Belém e Penha, de um modo geral toda a bacia do rio Tamanduateí, desde a margem esquerda do Ribeirão Aricanduva, a leste, até a margem direita do Rio Pinheiros, a oeste e sul, área constituída

de campos, daí a terminação dado ao nome das duas vilas.

Aí viviam com suas famílias e grande quantidade de peças de serviço – principalmente casais de índios tupiniquins com seus filhos, moças e rapazes solteiros – como são mencionados nos inventários e testamentos – que trabalhavam nas roças, na criação do gado, como também da produção de tecidos de algodão, sapatos de couro de porco além de ajudarem nas lidas domésticas.

Percorrendo as atas da Vila da Câmara de São Paulo do Campo do período quinhentista vamos descobrindo como a vila foi se estruturando e como foram surgindo os seus caminhos.

Na ata de 16 de janeiro de 1562 os vereadores “mandaram que se recolhessem os moradores a esta vila para nela residirem.” Este pronunciamento evidencia o fato de que os primitivos paulistas residiam em suas casas das roças. Com a instalação da vila eles passaram a frequentá-la nos finais de semana para assistir a missa de domingo na igreja dos jesuítas. 

Na ata do dia 30 de março de 1575  fazem pregão para que mandassem reparar o caminho do Ibirapuera e  o caminho que vai da vila para a fonte.

Na ata de 22 de setembro de 1576 comunicam  “que a ponte do rio Tamanduateí estava para cair, a que vai para a várzea e para o campo.”

Na ata do dia 3 de julho de 1581 “os moradores da banda do Ibirapuera são intimados a reparar o caminho.”

Na ata do dia 19 de janeiro de 1583 “ mandam que todo o morador da vila mandasse consertar os caminhos. “

Na ata de 23 de maio de 1584, “ como esta vila passava de 100 moradores e tem 5 ou 6 caminhos e uma ponte para fazer, que se repartissem os moradores para que eles fizessem todos em um dia, a saber: 16 moradores na banda da Ponte Grande, 20 moradores no Ibirapuera e 7 moradores no caminho dos Pinheiros. Alguns moradores que ficam fora destes caminhos serão obrigados a limpar os caminhos das fontes; os donos de chãos ao redor desta vila serão obrigados pelas suas testadas. “

Na ata do dia 13 de agosto de 1585 “a ponte que está no caminho do Ipiranga está para cair e era necessário que a consertassem. “

Na ata do dia 31 de agosto de 1585   ” a ponte do Tamanduateí era muito grande porquanto eram poucos homens para poderem fazê-la por ser o rio muito caudaloso que se chamassem todo o povo.”

Na ata do dia 14 de junho de 1586 lê-se uma justificativa para a não reparação de caminhos, pontes e fontes, ” porquanto toda a gente estava com o capitão Jerônimo Leitão e eram todos idos à guerra e não ficavam senão mulheres, mas todavia se notificassem as mulheres dos homens a quem estavam repartidas as tais pontes”. A ponte do Tamandiuatei, entretanto, seria reparada pela Câmara.

Na ata de 01 de maio de 1589 endereçaram carta ao Governador Geral pedindo a nomeação de um vigário para a igreja que desejavam construir pois a vila passava de 150 moradores.

Na ata de 4 de maio de 1591 “o procurador requereu para que se limpassem os caminhos reais como são os do ibirapuera, piqueri, pinheiros e ambuaçava. E que se reparasse a ponte grande desta vila.”

Na ata de 27 de março de 1593 ” mandaram limpar os caminhos do ibirapuera, jeribatiba, ambuaçava e ipiranga “

Numa das últimas atas do século XVI que chegou até nós, a do dia 25 de fevereiro de 1595, “ mandam limpar os caminhos públicos da vila e consertarem as pontes.”

Aí estão, como se depreende da leitura das Atas da Câmara, os caminhos quinhentistas de São Paulo. Todos eles foram conservados e atualmente constituem ruas e avenidas da cidade de São Paulo.

Os caminhos quinhentistas de São Paulo - por Gustavo Neves da Rocha Filho

Os caminhos quinhentistas de São Paulo – por Gustavo Neves da Rocha Filho

O caminho mais antigo, o do Ibirapuera, era na verdade a antiga trilha dos tupiniquins que, vinda do litoral, terminava na porta da aldeia de Tibiriçá, no atual Largo da Misericórdia. Chegava pelas atuais ruas Quintino Bocaiuva, Rodrigo Silva, Liberdade e Vergueiro desde a atual cidade de São Bernardo.

O caminho dos Pinheiros seguia pela rua José Bonifácio, Ladeira do Ouvidor – atravessando o ribeirão Anhangabaú – subindo pelas ruas Quirino de Andrade, Consolação, evitando um córrego que existia em frente ao portão do atual cemitério, prosseguindo pelas ruas Bela Cintra, Rebouças, Pinheiros e Butantã, até a margem do rio Pinheiros junto à ponte Eusébio Matoso.

O caminho do Ambuaçava tinha início no cruzamento da avenida Rebouças com a avenida Doutor Arnaldo, seguindo por esta até a rua Heitor Penteado, antiga Estrada do Araçá, e rua Cerro Corá onde a Câmara construiu um forte para observação de movimento de índios que pudessem atacar a vila.

O caminho do Ipiranga seguia pelas ruas da Glória, Lavapés, Independência, Bom Pastor e Estrada das Lágrimas. Foi por este caminho que D. Pedro I voltou de Santos no dia 7 de setembro de 1822, quando proclamou a Independência do Brasil às margens do riacho Ipiranga.

O caminho do Piqueri seguia pela rua Quinze de Novembro, atravessava o ribeirão Anhangabau, prosseguindo pelo bairro da Luz, então denominado Campos do Guarepe até as margens do rio Tietê onde os moradores criavam os seus gados.

O caminho Jeribatiba nascia no fim da Ladeira do Ouvidor, prosseguia pelas ruas Santo Antonio e Almirante Marques Leão, cruzava em diagonal duas quadras da rua São Carlos do Pinhal, descendo pelas ruas Manuel da Nóbrega, Bento de Andrade e avenida Santo Amaro até as margens do rio Pinheiros. Este caminho foi aberto com o uso da bússola pois segue uma reta desde o começo até o fim e provavelmente tenha sido aberto por interesse dos jesuítas que receberam logo após a instalação da vila de São Paulo a sesmaria do Geribatiba, onde esteve localizada a aldeia do cacique Caiubi.

O caminho do Tabatinguera era o caminho mencionado uma única vez nas atas quinhentistas – o caminho da fonte – onde os primeiros moradores iam buscar o barro branco para revestir as suas casas de taipa de pilão e onde as índias iam lavar roupas e os trastes de cozinha embora existissem algumas bicas de água mais próximas da vila.

Para a travessia do rio Tamanduateí, caudaloso na expressão dos oficiais da Câmara, foi construída a Ponte Grande tantas vezes mecionadas nas atas quinhentistas.  Atravessada esta ponte os moradores ocuparam as áreas de campos até a margem esquerda do ribeirão Aricanduva. Na confluência deste com o rio Tietê esteve localizada sobre um terraço fluvial semelhante ao da aldeia de Tibiriçá a aldeia já desaparecida quando chegaram os portugueses. No local foi encontrado, em 1920, um precioso vaso mortuário, que era visivelmente feito com barro turfoso da várzea do Tietê, com restos de esqueleto. Como se sabe os índios sepultavam os seus caciques em urnas funerárias feitas de cerâmica o que prova a exixtência de uma aldeia no local.

Como curiosidade, outro caminho aberto com o uso da bússola foi o que demandava o aldeamento de São Miguel, uma reta seguindo pelas avenidas Rangel Pestana e Celso Garcia, atravessando o bairro da Penha próximo à aldeia desaparecida mencionada acima. Mas este caminho já é seiscentista, das primeiras décadas do século XVII.

 

COMO CITAR ESTE TEXTO (ABNT 2017):

ROCHA FILHO, Gustavo. Os caminhos quinhentistas de São Paulo. 2017. Disponível em: <https://historiadesaopaulo.com.br/os-caminhos-quinhentistas-de-sao-paulo/>. Acesso em: ___.

Um comentário sobre “Os caminhos quinhentistas de São Paulo

  1. Boa noite, professor
    Acabei de ler a pesquisa de 1998 de Daniel Issa, orientada pelo senhor. Naquele texto a Trilha dos Tupiniquins partiria das imediações da Sé, talvez descendo pela Rua da Glória em direção ao Ipiranga ou cruzando a ponte do Tabatinguera em direção à Móoca, em ambos os casos se encontrando no início da Rua do Oratório, seguindo seu desenho, mudando de nome para Sapopemba e de volta para Oratório à beira do córrego que lhe dá o nome, até as proximidades de Mauá. Esta tese está em desuso? No seu texto atual a trilha vai em direção à zona sul, por Liberdade, Vergueiro e Jabaquara. Pergunto porque estou fazendo uma pesquisa para um projeto no qual pretendo caminhar o mais próximo possível do traçado da antiga trilha na malha atual da cidade e fazer registros fotográficos dessa viagem do centro de São Paulo até São Vicente.
    Obrigado pelo grande trabalho!

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