A Vila de Santo André da Borda do Campo

por Gustavo Neves da Rocha Filho

D.João III, Rei de Portugal, reconhecendo o insucesso da maioria das Capitanias Hereditárias em que vinte anos antes foi dividido o Brasil, resolveu em 1548, instituir o Governo Geral e proibir a escravização indiscriminada dos índios.

Em março de 1549, chegou à Bahia Tomé de Souza, primeiro governador geral do Brasil com mil homens e seis jesuítas para fundar a cidade do Salvador, a primeira capital da Colônia. No final de seu mandato viajou para inspecionar as capitanias do sul, detendo-se seis meses na Capitania de São Vicente.

São Vicente já era nomeado em cartas geográficas desde 1515 o que leva a supor que já existisse aí uma feitoria para algum tipo de intercâmbio com os indígenas e o fornecimento de víveres para as naus da Carreira das Índias que arribassem o seu porto. Antonio Rodrigues, sócio de João Ramalho, que chegou em 1520, possuía um estaleiro para o conserto de navios. No litoral de São Vicente não houve o comércio das madeiras de tinta, o pau-brasil. Mas os portugueses levavam escravos indígenas, como faziam desde 1444 nas ilhas do Cabo Verde, quando levaram duzentos negros cativos para Portugal. 

A vila de São Vicente foi fundada em 1532 por Martim Afonso de Souza, donatário da capitania, e era uma das que prosperaram com a exportação de açucar produzido por seus engenhos e outros mantimentos como farinha de mandioca, marmeladas e até gado de corte produzidos no planalto.

Já nessa época muitas famílias de portugueses habitavam o planalto, sendo que dezesseis moradores puderam ser identificados. A cada morador devia corresponder sete ou oito pessoas.  As famílias mais antigas, a exemplo de João Ramalho, que deve ter chegado em 1510, eram constituídas por pai português, mãe indígena e três ou quatros filhos mamelucos. Outras famílias eram de portugueses casados com mulheres brancas.

Viviam em pequenas fazendas, que eles denominavam roças, à moda das açoreanas, isto é, as casas de moradia, as hortas e o pomar eram cercados por muros de taipa (nos Açores os muros eram de pedra) sem portas e o acesso era feito por meio de escadas encostadas a eles. Esses muros protegiam as residências, principalmente à noite, da invasão de animais selvagens, como onças, como se vê num desenho publicado em anos recentes num calendário editado pela Imprensa Oficial do Estado. Esse costume era também utilizado na Grã-Bretanha, em Manchester, Lyme Park, século XVII. (Foto de Rita Cristina Ferreira).

Foi essa sociedade que Tomé de Souza encontrou serra acima e para organiza-la ordenou a criação de uma nova vila no planalto com sua Casa de Câmara e Cadeia, a eleição de vereadores, juiz, escrivão, alcaide, almotaceis e capitão-mor, como relata em carta que endereçou ao Rei D. João III datada de 1 de junho de 1553

ordenei outra vila no começo do campo dela Vila de São Vicente de moradores que estavam espalhados por ele e os fiz cercar e ajuntar para poderem aproveitar todas as povoações deste campo e se chamou vila de Santo André porque onde a situei estava uma ermida deste apóstolo e fiz capitão dela a João Ramalho, natural do termo de Coimbra, que Martim Afonso já achou nesta terra quando cá veio (PRADO, 2004:97)

Desde então, a história da vila de Santo André da Borda do Campo pode ser acompanhada pela leitura das atas sua câmara. 

As atas disponíveis para consulta são do segundo ano de existência da vila, quando o seu governo já estava consolidado e a vida transcorria normalmente. Na primeira destas atas, a de 22 de julho de 1555, nota-se a preocupação dos vereadores com o asseio da vila, quando condenam João Pires Gago por não mandar limpar os monturos. Essa preocupação vai se repetir ao longo dos anos e na ata de 18 de junho de 1557 encontra-se uma informação ao mesmo tempo curiosa e significativa porque permite supor que a área murada era de pequenas dimensões.

por quanto haviam privadas dentro dos muros desta dita vila e se queixavam muitas pessoas que tinham grande fedor e não podiam sofrer o dito fedor, pusessem pena de dois tostões para cada vez que se achar a dita privada (ACTAS, 1914:63)

Uma outra preocupação dos vereadores era com o estado dos caminhos, um deles mencionado na ata de 27 de julho de 1555,

o caminho que vai para baixo pelo ribeirão, (ACTAS, 1914:13)

evidenciando a posição da vila em lugar alto. Um outro caminho era o de ligação com a Vila de São Vicente, o caminho de mar, com certeza a trilha dos tupiniquins, utilizada pela necessidade da circulação de mantimentos e produtos de troca e para o contato com as autoridades sediadas no litoral.

Os muros da vila foram objeto de permanentes cuidados pois deles dependia a existência da vila tanto do ponto de vista político quanto da sua segurança. As atas de 27 de julho e de 30 de outubro de 1555, 25 de janeiro, 8 e10 de fevereiro, 12 de setembro e 14 de dezembro de 1556 insistem na necessidade da sua proteção. Na ata de 25 de janeiro de 1556 fica evidente que os muros eram de taipa de pilão e deviam ser protegidos das chuvas.

mandassem cubrir as cercas que em alguns lugares estava para cair (ACTAS, 1914:34)

A ocupação da vila também foi objeto de atenção dos vereadores. Na ata de 8 de fevereiro de 1556 decidiram que toda a pessoa que tivesse terra no termo da vila fosse obrigada, dentro de um ano, a fazer casa na vila. Dois dias depois, a 10 de fevereiro de 1556, foram mais taxativos.

toda pessoa que no termo desta vila tiver terra de sesmaria seja obrigado a fazer de fogo morto dentro nesta vila ou fora dela e não comprar nenhuma casa aos que ao presente as tem feitas (ACTAS 1914:35)

As casas da vila foram sempre construídas de terra socada pois a Câmara possuía dois pares de taipais que alugava aos moradores como se lê nas atas de 3 de novembro de 1555 e 17 de dezembro de 1557. Eram cobertas de palha, o que poderia provocar incêndios. Para preveni-los, os vereadores na sessão de 29 de agosto de 1556 resolveram que

não tirassem fogo de nenhuma casa sem ser coberto ou o leve em panela. Esta pena se entenderá das cercas para dentro e a qual pena se entenderão aquele que o levar e pagará cinquenta reis, a metade para o Concelho e a metade para quem o acusar. (ACTAS, 1914:45)

Através das doações de terras é possível conhecer os nomes de alguns moradores que construíram casas na vila. Assim, na ata de 30 de outubro de 1555 foi transcrita uma Carta de dada de uns chãos a Antonio Cubas, confrontando com João Ramalho e Francisco Pires, de um lado, e com Gaspar Nogueira de outro. No dia 22 de janeiro de 1556 deram a Baltazar Nunes, que já possuía um quintal cercado, mais vinte braças confrontando com Garcia Rodrigues e Gonçalo Fernandes.

No dia 7 de novembro de 1556

apareceu Manuel Ribeiro e requereu aos oficiais que o assentassem na vila para morador nesta dita vila porque nela tinha casa e roças e vacas e mulher e nela estava morador (ACTAS, 1914:52)

A presença de vendeiros na vila e seu termo é testemunhada pelas várias disposições da Câmara quanto aos preços de alguns mantimentos. Na sessão de 22 de janeiro de 1556 estabeleceram o preço da farinha em seis vinténs o alqueire. O padrão de medida, alqueire, foi comprado em Santos e aferido pelo padrão daquela vila foi entregue ao João Rodrigues, o afilador, responsável pela fiscalização.

  Na sessão de 29 de agosto desse mesmo ano elegeram João Galego para arrecadar as rendas do verde, isto é, cobrar o imposto sobre a venda de carne ao povo. A existência de gado de corte é comprovada por algumas medidas tomadas pela Câmara. Na sessão de 12 de fevereiro de 1556 decidiram que todos que fossem donos de vacas e porcos que não estivessem apastorados ou fizessem danos às roças pagassem um tostão de multa por cabeça.

A farinha de mandioca era o principal alimento da terra e produto de exportação juntamente com o gado, couros e marmeladas. Na Ata de 18 de junho de 1557 consta que

porquanto se fazia muito prejuízo ao povo espremerem a mandioca em espremedouros fora e morrerem muitos porcos ordenaram, todos juntos, que espremessem dentro de suas casas ou em seus quintais e que a água que sair da mandioca a botem  numa cova que não faça prejuizo ao gado (ACTAS 1914:62)

Apesar da aparente normalidade já começavam a surgir sinais de fragilidade para a existência da vila. Nem mesmo o pelourinho estava completo. Na sessão de 26 de junho de 1557 o procurador do Concelho requereu aos oficiais da câmara

mandassem pôr no pelourinho argola e sepo como em as vilas e cidades se costuma e logo pelos ditos oficiais foi dito que ao presente não tinha o concelho dinheiro, e era pobre e o não podiam fazer. (ACTAS, 1914:64)

A situação começou a se agravar quando receberam do Capitão e Ouvidor da Capitania pedido para que enviassem homens para a Fortaleza da Bertioga. Os oficiais da câmara solicitaram de João Ramalho, capitão e alcaide mor e guarda deste campo que não deixasse sair ninguém da vila porquanto, argumentavam,  estavam na fronteira de índios contrários que podiam atacá-los a qualquer momento.

Nessa mesma sessão, realizada a 30 de julho de 1557, requereram

que os homens que estão por fora os ajuntem e os façam vir a viver em a vila por serviço de Deus e del Rei Nosso Senhor (ACTAS, 1914:65)

Para que a vila não ficasse de todo abandonada, na sessão de 21 de agosto de 1557, os oficiais da câmara, reunidos no Paço do Concelho decidiram que

porquanto se iam todos à suas roças e ficava esta vila sem gente que se repartissem a metade um dia e outra metade outro dia de maneira que não fique a vila sem gente. (ACTAS, 1914:66)

Logo depois, na sessão de 20 de setembro de 1557, o procurador do concelho fez um apelo ainda mais dramatico, sugerindo a mudança da vila para outro local

em nome do povo como estavam em esta dita vila e morriam de fome e passavam muito mal e morria o gado que se fossem dentro no termo dela ao longo de algum rio.. (ACTAS, 1914:67)

Na última ata da vila, de 31 de março de 1558, assinada por dezesseis moradores, insistem os oficiais da câmara na necessidade de reparar os muros e fazer novas guaritas porque tinham informações que poderiam ser atacados por índios contrários, os tamoios, que viviam em constante luta com os tupiniquins (ACTAS, 1914:74)

A vila foi mudada como contam três dos antigos moradores, João Annes, Jorge Moreira e Antonio Cubas quando escrevem a D. Catarina, Rainha de Portugal, em nome da Câmara e mais moradores, em carta datada de 20 de maio de 1561.

Este ano passado de 1560 veio a esta Capitania Mem de Sá, Governador Geral, e sabendo o estado da terra mandou, de conselho de todos, que a vila de Santo André, onde antes estávamos, se passasse para junto da Casa de São Paulo, que é dos Padres de Jesus, porque nós todos lho pedimos por uma petição, assim por ser lugar mais forte e mais defensável e mais seguro assim dos contrarios como dos nossos índios, como por outras muitas causas. (LEITE, 1958:343)  

Referências bibliográficas

ACTAS DA CÂMARA DE SANTO ANDRÉ DA BORDA DO CAMPO. São Paulo, Duprat & Cia, 1914

LEITE, Pe. Serafin. Cartas dos primeiros Jesuítas doBrasil. São Paulo, Comissão do IV Centenário, vol I-1956, vol. II-1957 e vol.III-1958

PRADO, Paulo.Paulística. São Paulo, Companhia das Letras, 2004

 

COMO CITAR ESTE TEXTO (ABNT 2017):

ROCHA FILHO, Gustavo. A Vila de Santo André da Borda do Campo. 2017. Disponível em: <https://historiadesaopaulo.com.br/a-vila-de-santo-andre-da-borda-do-campo/>. Acesso em: ___.