A IGREJA MATRIZ DA VILA DE SÃO PAULO – Séculos XVI e XVII 

por Gustavo Neves da Rocha Filho

            O terceiro governador geral do Brasil, Mem de Sá, sabendo o estado da capitania mandou a conselho de todos  que a vila de Santo André da Borda do Campo se  mudasse para junto do Colégio dos Jesuitas por ser lugar mais forte e defensavel.

            Mudada a vila em 1560 mudaram tambem o nome para Vila de São Paulo do Campo, depois São Paulo de Piratininga e finalmente apenas São Paulo.

            Ao delinear o traçado da nova vila escolheram o contorno dos novos muros e no interior colocaram o pelourinho trazido de Santo André.

            Em torno do pelourinho traçaram uma praça aproximadamente quadrada onde o lado oposto ao pelourinho foi dividido em lotes de 3 braças de frente por 17 de fundo sendo os lotes dos cantos ocupados mais tarde por Anfré Mendes e Diogo Teixeira, ficando os dois lotes centrais destinados a construção da igreja matriz.

            No entanto somente 28 anos depois, na sessão da Camara de 7 de fevereiro de 1588, é que:

            resolveram fazer a igreja matriz para que tenha vigario e coadjutor, ornamento, sinos, etc.

            No mês de junho seguinte, no dia 06-06-1588, promoveram um ajuntamento do povo sobre a necessidade de se fazer a igreja matriz e nomearam dois homens para fintarem o dinheiro. A igreja devia ficar entre as casas de Diogo Teixeira e André Mendes.

          No ano seguinte, na sessão de 04-05-1589, fazem carta ao governador geral informando que a vila passava de 150 moradores e pedindo para nomear vigario para a igreja que se há de fazer e doar as coisas pertencentes ao culto, ornamento, sinos.

            Tres anos depois, em 01-01-1591 tornam a lembrar ao governador sobre a igreja porque a vila passava de 140 moradores, e que finta para se fazer não teve efeito. Os padres da companhia não podiam mais acudir a tanta necessidade por causa da gente ser muita e as enfermidades cresceram.

            Imaginaram, então, que seria necessário alguém que trabalhasse para a concretização do desejo de ter uma igreja matriz.

            Para isso, em 31-08-1591 fizeram uma reunião com o vigario da vila de Santos para apresentação do padre Lourenço Dias Machado vir receber provisão para vigario  da vila de São Paulo e se encarregar da concretização do desejo de todos

            Em 07-02-1593 estava o povo prestes a fazer a  igreja e que se o vigario quiser correr com a obra da capela logo se fará o corpo da igreja e assentaram que se começaria a fazer a igreja em maio próximo futuro

             Mas houve problemas com o vigário.

            Em 16-04-1593 para regularizar a situação do padre Lourenço Dias Machado não lhe deviam dar contas mas o deixariam ir negociar seus papeis. O padre estava há dois anos servindo de graça, fazendo muitos gastos e por isso pedia justiça.

            O padre Lourenço Dias Machado iria à Bahia para buscar seus papeis e confirmaram em 13-03-1594 a aprovação para o padre Lourenço Dias Machado ir pessoalmente tratar de seus interesses.

            Cinco anos depois, em 14-06-1598, um ajuntamento se fez para se louvar o povo em quem finte, isto é, cobrar  um tributo para a igreja.e se há quem faça mais barato por haver quem diga que é caro o preço combinado com Domingos Luis.

            Mais cinco anos são passados e a 25-07-1598 consta das Atas da Camara um termo de juramento que se deu aos alvidros para fintarem o que dar para a igreja.e que a dita igreja  está começada no meio da vila.

            Começam então os problemas com a construção. 

            Em 14-11-1598:

            que se notificasse Domingos Luis e Luis Alvares com pena de 6$000 que fizessem a igreja e não largarem mão dela.

            E problemas também com os moradores como o que se deduz da linguagem complicada da ata de 23-06-1598:

            que havia termo feito que todos mandassem  a  igreja  as taipas e que algunas pessoas foram reves (reinsidentes) e não mandavam  alguma e que fossem condenados conforme o termo e o declarou que os que não mandaram eram os seguintes a saber – Gaspar Coqueiro, João Rodrigues e seu genro, Clemente Alvares, Diogo Luis Malheta, Custodio de Alencar e sua sogra, aos quais pelos ditos oficiais houvessem por condenados cada um em 2$000

            As obras deviam estar interrompidas como se lê na ata de 11-11-1598: 

            que estando feita com madeira ao qual estava ao sol e a chuva e se perdia que era necessario agazalha-la e limpa-la e para isso fizessem uma tapagem de palha para que não se perdesse por custar aqui muito a madeira e estar paga perecendo e recebe muita perda o povo e que para isso era necessario que os moradores fizessem a dita tapagem.

            Quatro anos depois, em 20 de junho de 1602, porquanto a igreja matriz estava por acabar e o sr, governador tem dado licença por sua provisão que se fintasse o povo.

            Braz Esteves e Domingos Afonso foram ver a dita igreja e vissem o que há de mister assim madeira e telha como portas para conforme isso tudo se fintar o povo no dinheiro que se montar para uma vez e não por muitas.

            Decorridos oito anos a obra estava mais uma vez paralisada e em 09-02-1610 que fosse chamado Luis Alves para lhe encarregar que se faça a igreja matriz desta vila.e que se chamasse Gonçalo Pires para com eles combinarem que façam a igreja matriz pois Gonçalo Pires  é homem que entende de obras e tem oficiais e posse para o fazer.

            Finalmente a obra estava chegando ao fim como se deduz da leitura da ata de 24-08-1610:

            assento que fizessem os oficiais abaixo assinados com Cristovan de Alencar sobre fazer a igreja em que se obrigou a acaba-la.

            Em 02-10-1611 os oficiais da Camara reuniram todo povo para falar sobre o dinheiro que faltava para a igreja:

            a finta não alcançou o necessário para se acabarem as obras da igreja e que para não cair o que está feito e não se perder pois custou tanto aos moradores de trabalho de madeiras e outros petrechos para o qual era necessario botar-se mais tanto quanto baste e se acabar e não se perder o que está feito pois uma vila como esta não tem uma igreja matriz  como tem as demais vilas

            Na mesma sessão da Camara decidiram que se que havia de tomar contas aos oficiais passados da finta da igreja que se arrecadou para se fazerem as obras da igreja e assentaram todos que a tomassem de Jose de Camargo e Alonso Peres e por ser terceiro o padre vigario desta vila João Pimentel para desengano assim deste povo como das partes

            Depos de outros dois anos, em  16-12-1613:

            assentaram os oficiais que se ajuntasse o povo para domingo se fintar e tratar sobre se acabar a igreja para que não se perca o que está feito e para se pagar o que nisso se gastar e nisto acordaram por se tratar sobre se dar fim a obra da igreja.

            Na sessão de 11-04-1620 não vieram Gaspar da Costa, Pero Dias e Garcia Rodrigues por andarem ocupados com a armação da igreja matriz.

            Em 15-02-1625 a obra estava concluida pois mandaram que os moradores limpassem suas testadas, carpissem o adro da igreja matriz e praça desta vila.

             Os oficias da Camara acreditavam ser donos da igreja pois tinham nela lugar especial.

            Mas logo veio o protesto como se lê na última ata do século XVII , de 10-01-1632, que trata da igreja:

            o banco que estava no meio da igreja em que assentavam os oficiais era grande prejuízo e escândalo deste povo por tratarem mal as mulheres.

A criação de gado e o comércio de carne no século XVI em São Paulo

por Gustavo Neves da Rocha Filho

Os livros de Atas da Câmara da Vila de São Paulo permitem acompanhar tanto a produção como o comércio da carne bovina na pequena vila e sua zona rural onde habitavam apenas cinquenta moradores com suas famílias e agregados. 

           Perdeu-se o primeiro  livro de Atas e o segundo inicia-se em 1562. As primeiras Atas fazem referência ao número e nomes dos moradores da vila e seu termo.

            São mencionados 37 moradores em 1562, mais l em 1563 e mais 4 em 1564. São eles: Alvaro Annes, Antonio Cubas, Antonio de Mariz, Baltazar Nunes, Baltazar Rodrigues, Christovam Alvares, Diogo  Vaz Riscado, Domingos Luís Grou, Fernão Alvares, Fernão Dias, Francisco da Costa, Francisco Pires, Garcia Rodrigues, Gonçalo Fernandes, João Alvares, João Annes, João Luis, João Fernandes, João Ramalho, João Rodrigues, Jorge Moreira, Lopo Dias, Luis Martins, Manuel Vaz, Pero Dias, Salvador Pires e Simão Jorge. Moradores novos são André Fernandes em 1563 e Francisco Lopes, Manuel Fernandes, João Galego e Pero Fernandes.

            Prosseguindo, na Ata de 16 de janeiro de 1562 os vereadores apelam para que os moradores se recolhessem a “esta vila para nela residirem” pois quase todos moravam junto às suas roças.

            Na Ata de 29 de abril de 1564 constataram que os  moradores relutavam em mandar os bois desta vila para a armada estacionada em São Vicente e que prometeram acabar as farinhas no mês de maio, por motivo “de doenças e mortes causadas pelas bexigas”.

            Nessa mesma data elegem um homem para ir a São Vicente responder ao Sr. Ouvidor sobre as exigencias de bois e farinhas para armada de S,M.

            Na Ata de 27 de abril de 1576 recomendaram que as pessoas não fizesem o gado passar pela vila porque algumas o faziam pelo adro da Igreja causando prejuizos e danavam os caminhos e pastos e fazendas da vila.

            Na Ata de 4 de junho de 1576  fizeram o registro das marcas de gado de João Annes, Catira Gonçalves, Francisco Pires, Gaspar Rodrigues e Antonio Preto. No dia 15 seguinte registraram  a marca de Baltazar Gonçalves e depois no dia 26 a marca do gado de Lourenço Vaz.

            No ano seguinte, em 19 de julho de 1578 recomendam que todo o morador que tiver gado ameaçando roças e lavouras dos vizinhos o tragam apartado e de noite o metam em curral.

                Em 30 de agosto de 1578 estabeleceram os preços da carne de vaca assim como de outros mantimentos como também o que poderiam cobrar por seus serviços os sapateiros, ferreiros, carpinteiros e alfaiates, Nessa mesma data, recomendam que ninguém mexa em gado alheio sem estar presente o dono.

            No mesmo ano, a 27 de setembro proíbem matar gado sem conhecimento da câmara  para evitar que se mate gado alheio.

            Em 28 de setembro seguinte tiveram que rebaixar o preço da carne, estabelecendo uma tabela de preço para os diversos cortes.

            Em 11 de outubro ainda do mesmo ano, fizeram uma  devassa para saber de quem era o gado que faltava aos moradores da vila, desde  quatro anos. O alcaide, deu em coima  dez cabeças de gado a João Maciel, seu cunhado.

            Logo em seguida, a 29 do mesmo mês, João Maciel  disse que as vacas foram achadas em sua lavoura e eram, quatro de Gaspar Afonso, cinco de Marcos Fernandes, cinco de  Gonçalo Gonçalves, uma de Francisco Fernandes e mais quatro de algum desconhecido.

            A 20 de abril de 1579 tiveram que elevar o preço da carne porque ninguém queria ficar com o seu comercio.

            Multaram Paulo Rodrigues por vacas achadas na roça de Lopo Dias, a 9 de maio de 1579.

            A 25 de outubro de 1579 alguns moradores tinham se  queixado que “morriam de fome” porque ninguem queria vender carne. Em vista disso o seu preço foi marjorado.

            A 27 de fevereiro de 1580 os vereadores recomendaram  aos criadores de gado que não aproveitasem as capoeiras próximas da vila por andarem nelas vacas soltas e sem que seus donos cuidassem delas. Por isso deviam estabelecer suas roças a três ou quatro léguas de distância, ficando desobrigados de vir a missa.

            Para estabelecer uma certa ordem, resolveram que não fizessem casa nem curral nas capoeiras e campos do Conselho a menos de 300 braças de um morador a outro, salvo acordo entre as partes.

            A 14 de maio do mesmo ano proíbem a construção de curral pegado a outro sendo o afastamento entre eles de 60 braças, salvo acordo entre as partes.

            Ainda preocupados com a criação do gado  a Câmara, a 27 de julho, deu um prazo até 16 de agosto para as pessoas que tivessem gado solto no Guarepe os levassem para currais e tranqueiras apropriadas e os ferrassem com suas próprias marcas.

            No ano seguinte continuam as mesmas preocupações e a Câmara, no dia 8 de julho resolve que o gado que está na capoeira há nove ou dez anos deverá ser retirado pelos seus donos dentro de dois meses, sob pena de multa.

            Os oficiais do ano de 1582 continuam a ter problemas com o gado na vila. Em 17 de fevereiro falam  que quem tiver roça ao longo dos campos do Conselho a cerquem com pena de perder o gado que fizer dano na dita roça. Quem tiver gado será obrigado a encurrala-lo à noite para que não faça mal ao vizinho e falam na proibição de bulir em gado alheio, sob a pena de multa.

            Embora os paulistanos estivessem preocupados com a constante ameaça dos íindios carijós e com a construção da Igreja da Sé o problema do abastecimento da carne continuava na pauta.

            Em 15 de junho de 1583 a Câmara constatou que os moradores padeciam pela falta de carne de vaca pela razão  de sairem muitas para a armada de S.M. e pelo fato do preço estar muito baixo e ninguém quisesse vendê-la, Consultariam o povo, em ajuntamento, para que se pudesse aumentar o preço tabelado.

            A 9 de agosto de 1583 fizeram um ajuntamento do povo para discutir uma provisão do Governador que pedia 200 rezes de gado para a armada de S,M.

            Os criadores se excusaram de mandar alegando inexistêcia de machos por terem sido dados no ano passado e pelo existente estar muito magro.

            Também porque da última remessa não lhe pagaram em “dinheiro de contado” conforme carta de S.M. mas em vinho, vinagre, ferro e lona podre ao preço que eles estabeleceram.Por essas razões não haveriam de mandar gado nenhum.

            Consta da Ata de l9 de agosto de 1583 que foi realizado um pregão para que toda pessoa que prometeu gado para a armada de S.M a pedido do Senhor Almirante, o levasse ao mar por meados de setembro, sob pena de multa e degredo.

             Em 1586, conforme Ata de 7 de abril, a providência foi  estabelecer o preço para o queijo de leite de vaca.

            Em 1587, a 21 de março, foi tomada uma única providência: que nenhum morador matasse vaca ou boi sem licença da Câmara.           

            Em 1588 a única medida tomada pela Câmara foi apregoarem, em 24 de agosto, que ninguém se faça senhor dos campos do Conselho e nele deixem pastar o gado, ainda que seja ao redor de suas casas.

           A 20 de abril de 1589 a Câmara deu exclusividade a André Escudeiro para cortar carne em todos os sábados e vendê-la pelo preço estabelecido.

            A Câmara também se preocupava com o estado dos caminhos e pontes. Assim, a 2 de dezembro de 1589 preveniram os moradores de Itaguaçu, Piquerí e os de Piratininga que traziam gado estavam obrigados a consertar a dita ponte antes do Natal.

            Em 14 de abril de 1590 deram a João Fernandes a obrigação de cortar carne por dois anos, com exclusividade.

            Em 2 de julho seguinte aumentaram o preço da carne fornecida por João Fernandes.

            A 7 de julho do mesmo ano resolveram aumentar de novo o preço da carne.

            Aos 16 de maio proibiram o corte de carne até o senhor capitão fazer guerra aos índios mas como havia carne em abundâcia não aprovaram a medida.

            Aos 5 de junho proibiram que se levasse para fora, nem se matasse vaca fêmea sem liceça da Câmara sob pena de multa e degredo.

            É curioso observar que com a existência pouca moeda os pagamentos eram feitos por meio de escambo, como podemos observar na redação da ata da Câmara de 4 de julho de 1593:

       “Antonio de Zouro se obrigou a cortar carne até a quaresma do ano de 1594 recebendo pano de algodão, resgate, couros, cera, novilhos, algodão, galinhas, porcos e o mais que as partes com ele consertassem”.

          Não dando carne pagaria a multa de 1$500 ao Conselho e ainda nessa sessão resolveram que se fizesse um pregão para que ninguém cortasse carne sem licença de Antonio Zouro.

            E assim termina a história da criação do gado bovino e seu comércio na pequena vila de São Paulo durante o decorrer da segunda metade do século XVI. 

            Em 1584, conforme Ata de 23 de maio desse ano a vila passava de 100 moradores e tinha 5 ou 6 caminhos e uma ponte.  

            Em 5 de maio de 1589 escrevem ao Governador dando conta que a vila passava de 150 moradores  e então desejavam construir uma igreja, para a qual solicitavam a nomeação de um padre e a doação do altar e demais alfaias para o culto.

COMO CITAR ESTE TEXTO (ABNT 2017):

ROCHA FILHO, Gustavo. A criação de gado e o comércio de carne no século XVI em São Paulo. 2023. Disponível em: <https://historiadesaopaulo.com.br/a-criacao-de-gado-e-o-comercio-de-carne-no-seculo-xvi-em-sao-paulo/>. Acesso em: ___.

A lavoura do trigo em São Paulo – Século XVII

por Gustavo Neves da Rocha Filho

“Senhor

Posto que o capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escreveram a Vossa Altesa a nova do achamento…”

Assim tem início a famosa carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota de Pedro Alvares Cabral, e assim termina:

“Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro. Porém a terra em si é de muitos bons ares … E de tal maneira graciosa, que, querendo aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”.

O trigo também deu, mas foi muito pouco, como veremos neste ensaio.

O moinho banal
Fonte: Silva, J. História da Civilização para o terceiro ano ginasial (2a. ed.). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1934.

Ambrosio Fernandes Brandao, em seu livro, “Diálogo das Grandezas do Brasil”, composto em 1618, mencionando o trigo conta que:

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São Paulo: Lembranças da Avenida Paulista.

por Gustavo Neves da Rocha Filho

1942
Comecinho do mês de abril.
Onze horas da noite.
Avenida Paulista.

            Calçadas desertas, rua deserta, os trilhos do bonde refletindo a luz das luminárias penduradas bem no centro da via lá no alto em fios que a escuridão da noite escondia. De cada lado, sobre os passeios, a massa escura das árvores plantadas muito próximas umas das outras, talvez uns três ou quatro metros.

            Nessa noite eu não era pedestre. Menino ainda, acabava de chegar de uma viagem de férias e estava ao lado do motorista. Quando o automóvel, subindo pela Rua Teodoro Sampaio e avançando pela Avenida Doutor Arnaldo entrou na Avenida Paulista. A imagem que eu vi ficou gravada para sempre na minha memória. Daí a instantes eu estaria em casa da vovó, modesta casinha com seu jardim e quintal lá na Rua Batatais. A Paulista, naquela noite, estava bem diferente daquela avenida que eu percorria, durante o dia, até a esquina da Rua Augusta, ou até um pouco mais adiante.

            As férias terminaram e as aulas no Colégio São Luís, na esquina da Rua Bela Cintra, recomeçaram. O mês de julho chegou e com ele o Dia do Sagrado Coração de Jesus. Fardados de branco, como todos os alunos das outras escolas católicas, eles desfilavam garbosamente pelas ruas da cidade. O palco do Colégio São Luís era a Avenida Paulista, sem nenhum carro, sem nenhum bonde. O guarda de trânsito, que apelidavam de “grilo” pelo seu apito estridente, cuidava do sossego da rua. Mas nem era preciso pois o bonde que vinha da cidade – era como chamavam o atual centro histórico – vinha pela Rua Brigadeiro Luiz Antônio, percorria um pequeno trecho da Avenida Paulista e descia pela Rua Pamplona até o Jardim Paulista. Automóveis, então, eram raros. Durante o desfile poucas pessoas, em geral os pais, ocupando as calçadas entre as árvores junto ao meio fio.

            Anos depois eu andaria pelas mesmas calçadas até a Rua da Consolação, ou para pegar o bonde Pinheiros, ou para comprar pão ou doces na Padaria Primavera. Nesse tempo eu ainda não me interessava por arquitetura e o que me chamava a atenção eram as muretas baixas que cercavam os terrenos das casas construídas longe do alinhamento, em meio a muitas árvores.

            Do outro lado da rua, a Capela do Colégio São Luiz parecia ter uma altura descomunal, hoje bem pequena junto aos prédios seus vizinhos de mais de trinta andares. Certa vez, causou-me surpresa uma enorme placa com os dizeres “Clínica Medica” pregada num daqueles casarões situados entre as ruas Bela Cintra e Haddock Lobo. Certamente os médicos da Faculdade de Medicina, ali perto na Avenida Doutor Arnaldo, estavam abrindo seus consultórios e o uso residencial da Avenida Paulista começava a mudar.

1962.
Uma tarde do mês de abril.
Avenida Paulista.

            Eu já não era mais pedestre. Meu carro estava estacionado em frente ao Conjunto Nacional, onde eu instalara o meu escritório. Na calçada, o Restaurante Fasano colocara suas mesas cercadas por vasos de flores onde eu recebia meus amigos para um papo informal. Na rua circulavam carros, ônibus e bondes mas não chegavam a nos incomodar com seus ruídos. Nas calçadas circulavam poucas pessoas, mas nos intervalos das aulas os alunos do Colégio Paes Leme, ali na esquina da Rua Augusta, atravessavam a rua e tomavam de assalto o saguão do Conjunto Nacional com aquela algazarra própria dos jovens.

            Os anos foram passando e o meu carro não podia mais ficar estacionado na Avenida Paulista. Passei a deixá-lo na Alameda Santos, depois na Alameda Jaú e, com o crescimento do número de automóveis, só ia encontrando vagas cada vez mais longe, nas alamedas Itu, Franca, Lorena e ia me tornando outra vez um pouco pedestre. Até que abandonei de vez o automóvel.

2012.
Mês de junho, meio da semana.
Seis da tarde.
Avenida Paulista.

            Fazia meia hora que eu percorria as calçadas da avenida, muito largas, com o piso adequado aos meus passos de velhinho octogenário, com muitas pessoas caminhando ao meu lado, despreocupadas, algumas parando para com o seu celular fotografar algum edifício mais especial. Na avenida, agora de uma largura desmesurada, circulavam ônibus e automóveis de todas as marcas e cores. Mas eis que tudo muda. As calçadas foram tomadas por uma multidão apressada que corria para as escadarias do metrô ou para se aglomerar nos pontos de parada dos ônibus. Os ônibus e os carros pararam como se a avenida fosse um grande estacionamento. Lembrei-me da Avenida Paulista deserta, e até do tapete amarelo que era formado quando as flores dos ipês junto ao meio fio caiam no fim da primavera.

            Por que tanta gente na rua, tanto carro, tantos ônibus, naquela hora? Mais de vinte milhões, na Região Metropolitana de São Paulo – assegura o IBGE. O que será de São Paulo quando, daqui a quarenta anos, completar 500 anos? Os meninos de hoje lembrarão das suas manobras arriscadas percorrendo de skate as amplas calçadas da Avenida Paulista? Não sei.

COMO CITAR ESTE TEXTO (ABNT 2017):

ROCHA FILHO, Gustavo. São Paulo: Lembranças da Avenida Paulista. 2018. Disponível em: <https://historiadesaopaulo.com.br/sao-paulo-lembrancas-da-av-paulista/>. Acesso em: ___.

As aldeias e trilhas tupiniquins no Planalto Paulista

por Gustavo Neves da Rocha Filho

el Campo de aqui doze legoas se quierem ayuntar
tres poblaciones para mejor aprender la doctrina
(LEITE: 1956:496)

 

O Padre Manuel da Nóbrega em carta ao Padre Luís Gonçalves da Câmara, datada “do sertão de São Vicente, último de agosto de 1553” diz textualmente que no dia anterior, festa da degolação de São João, fez “50 catecúmenos”, isto é, escolheu cinquenta crianças, entre meninos e meninas, para lhes ensinar a ler e escrever, e colocou dois Irmãos na aldeia para a doutrina deles.

Eram índios de três aldeias habitadas pelos tupi-guaranís, identificadas pelos historiadores como sendo Piratininga, chefiada pelo cacique Tibiriçá, Jurubatuba, chefiada pelo cacique Caiubi e Ibirapuera, cujo cacique não teve o seu nome conhecido. Sabe-se apenas que sua filha foi dada como esposa a um dos primeiros povoadores de São Paulo, Braz Gonçalves, nascido antes de 1552. (LEME, 1902:22)

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O interesse de João III pela Cia de Jesus

por Gustavo Neves da Rocha Filho

Portugal, seu povo e seu rei estiveram, à época manuelina, quando se descobriu o Brasil, completamente absorvidos pelo opulento e relativamente fácil comércio com as Índias, cujo caminho marítimo Vasco da Gama havia descoberto em 1498. Mas o decréscimo desse comércio prejudicou a situação econômica e financeira do Reino a ponto de D. João III ser obrigado até mesmo a abandonar algumas praças fortes no norte da África, duramente conquistadas no século anterior.

Era também escassa a população de Portugal e dificílima a colonização do Brasil, que ainda não tinha dado nada, mas prometia grandes maravilhas. As lendas sobre minas e tesouros alucinavam, em toda a parte, ávidos europeus. Ninguém podia distinguir o que de real haveria nas ficções criadas e ampliadas por imaginações desvairadas. Algumas dessas lendas corriam soltas e desordenadas e foram se condensando até se cristalizaram no “El-Dourado”, a sonhada e fabulosa terra onde haveriam montanhas de ouro, prata e pedras preciosas e que poderiam ser encontradas no Peru, denominação geral das Índias de Espanha na América recém-descoberta.

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A importância das cartas dos primeiros jesuítas do Brasil

por Gustavo Neves da Rocha Filho

Para comemorar o IV Centenário da Cidade de São Paulo, ocorrido no ano de 1954,  o Governo do Estado organizou várias comissões encarregadas das celebrações daquela efeméride.

Coube à Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, por proposta de um de seus membros, Sérgio Buarque de Holanda, publicar as cartas dos Padres, Irmãos e autoridades jesuítas redigidas entre 1538 e 1565, por serem documentos da maior importância para a história tanto de São Paulo, quanto do próprio Brasil.

A publicação constou de três alentados volumes de mais de quinhentas páginas cada um, dados a público em 1956, 1957 e 1958. Foram publicadas 207 cartas, sendo 143 oriundas do Brasil redigidas por Padres e Irmãos e 64 respostas das autoridades sediadas em Lisboa, Trento e Roma.

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Vila de São Paulo: evolução do traçado urbano

por Gustavo Neves da Rocha Filho

Trinta anos depois da instalação da Vila de São Paulo os lotes no interior da área limitada pelos muros de taipa de pilão já estavam todos ocupados. O quarto lado da praça, que estava aberto para o terreiro dos jesuítas, foi fechado em 1592 com a construção de um correr de sobrados por Domingos Luiz Grou.

Dois anos antes, a 26 de março de 1590, o procurador do Concelho Gonçalo Madeira solicitara que se nomeassem dois homens para partidores de terra sendo nomeado um homem para a demarcação de novos lotes. (ATAS, 1967:391)

Ainda com o objetivo de abrigar maior número de moradores os oficiais da câmara, em 16 de fevereiro de 1591, pediram que

“se alargasse a cerca por fora de maneira que haja espaço para que fique a gente agasalhada e haja espaço para pelejarem, sendo necessário” (ATAS, 1967: 415)

A população aumentara e a vila e seu termo passava de 150 moradores quando os vereadores pediram ao Governador Geral a nomeação de um vigário para a igreja que desejavam construir, conforme ata do dia 1° de maio de 1589. (ATAS, 1967:370)

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Os caminhos quinhentistas de São Paulo

por Gustavo Neves da Rocha Filho

Quando a Vila de São Paulo do Campo foi instalada, com a extinção e transferência da Vila de Santo André da Borda do Campo esta possuia pelo menos dezesseis moradores pois foi esse o número de assinaturas registradas no dia 31 de março de 1558  na última ata da sua câmara.

A carta de 20 de maio de 1561 que a Câmara de São Paulo enviou à D. Catarina, Rainha de Portugal, solicitando ” nos faça mercê de nos mandar prover de armas, a saber: duas duzias de espingardas e uma duzia de bestas, e dois pares de berços com a polvora necessária, e outrossim duas duzias de espadas que sejam boas, e estas armas serão entregues a esta Câmara  (…)  nos determinamos a ir todos à guerra não chegando ainda a trinta homens brancos. e conosco irão outros trinta mancebos mestiços da terra. “

 Os primeiros trinta moradores do planalto ocupavam áreas dos atuais bairros do Ipiranga, Pinheiros, Ibirapuera, Santo Amaro, Braz, Belém e Penha, de um modo geral toda a bacia do rio Tamanduateí, desde a margem esquerda do Ribeirão Aricanduva, a leste, até a margem direita do Rio Pinheiros, a oeste e sul, área constituída

de campos, daí a terminação dado ao nome das duas vilas.

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A Vila de São Paulo do Campo ou de Piratininga

por Gustavo Neves da Rocha Filho

Para que não abandonassem São Vicente e não deixassem a vila exposta aos ataques de franceses, ingleses e tantos quanto cobiçavam as terras de Portugal, era proibido pelo Rei e pelo Governador Geral que colonos se instalassem no planalto embora já existissem, desde antes de 1530, muitos portugueses com roças e lavouras serra acima.

Os tupiniquins do planalto desde 1550 – quando o Padre Leonardo Nunes chegou a São Vicente com a incumbência de catequizar os selvagens e assim facilitar a colonização iniciada em 1532 por Martim Afonso de Souza – interessaram-se vivamente por obter a colaboração dos religiosos para ensinar aos seus filhos ler e escrever e, principalmente obter objetos de ferro, tais como anzóis, facas, enxadas e machados produzidos pelo ferreiro, Ir. Mateus Nogueira. (LEITE, 1557:112)

Os jesuítas encontraram um jeito para atender aos índios levando para o litoral seus filhos e alojando-os no recém construído Colégio. Entretanto, a providência não resultou satisfatória, porque faltavam alimentos, escassos na Vila de São Vicente, e que só poderiam vir das roças instaladas no alto da serra.

Os índios continuavam insistindo para que os padres vivessem entre eles, como conta o Padre Manuel da Nóbrega ao Padre Simão Rodrigues, Provincial de Portugal, em carta de 10 de março de 1553. (LEITE, 1956:452)

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