por Gustavo Neves da Rocha Filho
Para que não abandonassem São Vicente e não deixassem a vila exposta aos ataques de franceses, ingleses e tantos quanto cobiçavam as terras de Portugal, era proibido pelo Rei e pelo Governador Geral que colonos se instalassem no planalto embora já existissem, desde antes de 1530, muitos portugueses com roças e lavouras serra acima.
Os tupiniquins do planalto desde 1550 – quando o Padre Leonardo Nunes chegou a São Vicente com a incumbência de catequizar os selvagens e assim facilitar a colonização iniciada em 1532 por Martim Afonso de Souza – interessaram-se vivamente por obter a colaboração dos religiosos para ensinar aos seus filhos ler e escrever e, principalmente obter objetos de ferro, tais como anzóis, facas, enxadas e machados produzidos pelo ferreiro, Ir. Mateus Nogueira. (LEITE, 1557:112)
Os jesuítas encontraram um jeito para atender aos índios levando para o litoral seus filhos e alojando-os no recém construído Colégio. Entretanto, a providência não resultou satisfatória, porque faltavam alimentos, escassos na Vila de São Vicente, e que só poderiam vir das roças instaladas no alto da serra.
Os índios continuavam insistindo para que os padres vivessem entre eles, como conta o Padre Manuel da Nóbrega ao Padre Simão Rodrigues, Provincial de Portugal, em carta de 10 de março de 1553. (LEITE, 1956:452)
Pressionado por padres e índios o Governador Geral Tomé de Souza acabou cedendo quanto à proibição, como relata em carta de 1∞ de junho de 1553 ao rei D. João III
“que se quizessem entrar polla terra adentro que o façam dois ou três com seus linguas a pregarem ao gentio, mas yrem fazer casa enre elles me não parece bom por agora”. (LEITE, 1956: 486)
O Padre Manoel da Nóbrega valeu-se dessa decisão do Governador e foi ao planalto fazer 50 catecúmenos na Aldeia de Tibiriçá, a 29 de agosto de 1553, onde deixou dois Irmãos para aí residirem.
A presença dos jesuítas agradou de tal maneira aos índios que eles construíram uma casa para os padres:
” Desde janeiro até o presente, estivemos à vezes numa casa pobrezinha, feita e barro e paus, e coberta de palha, de 14 passos de comprimento e 10 de largura, que é ao mesmo tempo escola, enfermaria, dormitório, refeitório, cozinha e despensa. […] Esta casa construíram-na os próprios índios para o nosso uso…” (LEITE, 1957: 110-111)
Essa casa, “paupercula domo”, foi inaugurada com a missa rezada no dia 25 de janeiro de 1554, dia da Conversão de São Paulo, com a presença de doze ou treze Padres e Irmãos vindos de São Vicente para a cerimônia. (LEITE, 1957:105)
A Aldeia de Piratininga passou a viver, desde então, uma vida diferente. Se a presença dos padres agradou a alguns, desagradou a outros que não aceitaram a disciplina e a doutrina imposta pelos religiosos.
No ano seguinte, março de 1555, o Irmão José de Anchieta ainda estava otimista quanto aos progressos da catequese, mas não podia deixar de externar o seu temor pelo futuro.
“É verdade que os nossos catecúmenos nos deram ao princípio grande mostra de fé e probidade. Mas, como se movem mais pela esperança de lucro e certa vanglória do que pela fé, não têm nenhuma firmeza e facilmente voltam aos seus antigos costumes”. (LEITE, 1958:208)
O desfecho daquele desagrado foi o abandono da Aldeia de Piratininga por todos os índios, fiéis e infiéis aos jesuítas, como relata Anchieta em carta de abril de 1557.
“A maior parte destes fez outras moradas não longe daqui, onde agora vivem (…) persuadio-lhes agora uma diabólica imaginação, que esta Igreja é feita para a sua destruição em a qual os possamos encerrar; e aí matar aos que não são batisados e aos batisados fazer nossos escravos”. (LEITE, 1958:366)
Abandonados e ameaçados de morte por uns e protegidos por outros o Padre Manoel da Nóbrega traçou um programa ambicioso: transformar a Casa de Meninos em Colégio segundo os regulamentos da Companhia de Jesus. Com essa mudança poderiam os jesuítas ter propriedades e explorá-las comercialmente com a ajuda dos índios fiéis. Bastava pedir ao donatário a concessão de uma sesmaria. É assunto de sua carta ao Provincial da Companhia datada de 2 de setembro de 1557:
“somente se podia pedir a Martim Afonso de Souza sete ou oito léguas de terra para ao Colégio de Piratininga, e servirá isto para quando em algum tempo aquilo se povoar, o que se espera’. (LEITE, 1558:414)
Os jesuítas obtiveram as terras pretendidas, primeiramente junto à sua Casa de Meninos, mas como isso pudesse prejudicar a vinda dos colonos para junto deles preferiram as terras onde antes habitavam os índios de Caiubi, depois chamada Sesmaria de Geraibatiba. (LEITE, 1958:198)
Quando o Governador Geral, Tomé de Souza, permitiu aos jesuítas subir ao planalto resolveu também reunir em uma vila os colonos que aí habitavam tornando-os independentes da Vila de São Vicente. Frei Gaspar conta como se efetuou a medida.
“… subiu a serra Antonio de Oliveira, acompanhado do Provedor da Fazenda Real Brás Cubas, e levantou Pelourinho na povoação de João Ramalho, aos 8 de abril de 1553, em nome daquele Donatário, dando-lhe o título de Vila de Santo André. (MADRE DE DEUS, 1953:122)
Em 1560, por ordem do Governador Geral Mem de Sá a Vila de Santo André foi extinta e mudada para onde estavam os jesuítas com consta de carta que os andreenses enviaram à D. Catarina, Rainha de Portugal.
“Este ano passado de 1560 veio a esta Capitania Mem de Sá, Governador Geral, e sabendo o estado da terra mandou, de conselho de todos, que a vila de Santo André, onde antes estávamos, se passasse para junto da Casa de São Paulo, que é dos Padres de Jesus, porque nós todos lho pedimos por uma petição, assim por ser lugar mais forte e mais defensável e mais seguro assim dos contrários como dos nossos índios, como por outras muitas causas”(LEITE, 1958:343)
A primeira providência dos colonos foi transferir para o novo local o Pelourinho, um simples tronco de árvore, sem argola e sepo, como se lê na ata de 26 de junho de 1557 da câmara da Vila de Santo André.
“E logo na dyta camara requereu ho procurador do Concelho aos oficiais da camara que suas mercês mandassem por no pelourinho argola e sepo como as vilas e cidades se costuma e logo pelos ditos oficiais foi dito que ao prezente não tinha o Concelho dinheiro, e era pobre e o não poderiam fazer”. (ATAS, 1914:64)
Com a mudança da vila o local escolhido para colocação do Pelourinho foi a extremidade inferior da atual Praça da Sé, fronteira ao terreiro dos jesuítas.
A providência seguinte foi a demarcação de uma praça quadrada com trinta braças de lado como era costume nas cidades medievais portuguesas, tendo ao centro o pelourinho.
No lado principal da praça foram demarcadas três datas de terra, como eram chamados os lotes destinados às edificações, com 20 braças de fundo. Os dois lotes das esquinas foram ocupados por André Mendes e Diogo Teixeira e o lote central ficou desocupado até o ano de 1588 quando nele resolveram os oficiais da câmara construir a primeira igreja da Sé.
O lado à esquerda do principal teve apenas um lote demarcado, ocupando toda a largura da quadra, provavelmente para receber a casa de Câmara e Cadeia.
O terceiro lado formou um ângulo menor de 90∞ com lado principal, fazendo com que a praça tomasse a forma de um trapézio. Nesse lado foi construída a Igreja de São Pedro e atualmente é ocupado pela Caixa Econômica Federal.
O quarto lado da praça ficou aberto para o terreiro dos jesuítas e só foi fechado em 1592, quando Domingos Grou construiu um grupo de sobrados.
A segunda providência dos oficiais da câmara foi a demarcação do alinhamento dos muros da vila, muros não apenas defensivos mas, segundo o costume medieval, definidores da condição de cidadania para os seus moradores.
O cronista Nuto Santana, em 1954, imaginou muito acertadamente o muro seguindo o alinhamento da futura rua de Santa Teresa até por trás da igreja da Sé (SANTANA, 1958:596).
Valendo-se do barranco voltado para o rio Tamanduateí, por si só oferecendo certo grau de defesa, os muros foram demarcados numa poligonal em tramos de vinte e trinta braças, com suas extremidades no alto da atual avenida Rangel Pestana, conhecida como Buracão do Carmo, e a rua General Carneiro, antiga rua Municipal, incluindo no perímetro o terreiro dos jesuítas. (Vide figura)
Nos muros da vila foram abertas três portas, sendo a principal, chamada Porta Grande, na atual rua Direita, rua que teve o primeiro nome de rua da Misericórdia porque dava acesso à Casa da Misericórdia construída fora dos muros.
A segunda porta dava acesso para a atual rua Quinze de Novembro, – caminho que levava aos campos de pastagens onde eram criados gado vacum e cavalar – depois chamado caminho do Piqueri e do Guaré.
A rua que terminava na terceira porta era conhecida por rua do Carmo porque ia ter à casa dos carmelitas também construída fora dos muros.
A rua do Carmo teve a preferência dos novos moradores porque permitia lotes com os quintais voltados para o vale do rio Tamanduateí, facilitando o escoamento das águas de chuva.
A pesquisa efetuada em 370 “Inventários e Testamentos” correspondentes aos anos de 1578 a 1700 permitiu identificar moradores que residiram ou tiveram casas dentro da nova vila. São eles, nos seguintes locais:
Na Praça da Matriz
– Izabel Mendes, filha de Diogo Mendes, que teve parte de seu lote desapropriado para ampliação da Igreja Matriz sendo-lhe dado em pagamento 100 braças de chãos no Ipiranga. (INV, 1920, vol.9:21-32)
– Luiz Furtado, casa de dois lanços de taipa de pilão e coberta de telhas e com uns lanços de taipa de mão sem quintal, perto das casas de Calixto da Motta, avaliada em 12$000. (INV, 1921, vol. 10:15-265)
– Anna de Proença, casa de um lanço de taipa de pilão, vizinhas das casas de Antonio Teles, com quintal das casas de Matheus Nunes de Siqueira, com um segundo quintal que comprou de Domingos Leite, avaliado em 50$000. (INV,1921, vol 20:257-287)
– Manoel João Branco, casa defronte da Igreja Matriz de taipa de pilão coberta de telhas com seu quintal, vizinha de Francisco João e Domingos Cordeiro, avaliada em 20$000. (INV, 1921, vol. 13:281)
Rua da Misericórdia
– Francisco de Miranda Torres, casa sobradada, de taipa de pilão coberta de telhas, avaliada em 25$000. (INV, 1921, vol. 14:65-90)
– Paschoal Leite de Miranda, casa de dois lanços de taipa de pilão coberta de telhas avaliada em 40$000. (INV,1921, vol.22:481) – Francisco Cardoso, casa de taipa de pilão de três lanços que não tem mais que as taipas, ainda por acabar, avaliada em 15$000. (INV, 1920, vol. 3:5 a 17)
Rua do Carmo
– Anna Tenória, casa de sobrado de dois lanços e um lanço pequenino vizinhos de casas dos herdeiros de João Pedroso, dos dois lados, avaliada em ……(INV, 1921, vol. 12:442- 480)
– Antonio Raposo, o velho, casa de dois lanços de taipa de pilão coberta de telhas, avaliada em 28$000. (INV , 1921, vol. 11:105-126)
– Bartholomeu Rodrigues, casa de taipa de pilão coberta de telhas, vizinha de Gaspar Cubas Ferreira que são de Lucrécia Moreira e do outro lado com José Dias Paes. (INV, 1920, vol. 2:279)
– Francisco Ribeiro de Morais, casa de um lanço assobradada, com seu corredor e quintal, avaliada em 60$000. (INV , 1921,vol. 16:479)
– Francisco Velho de Morais, casa vizinha de Domingos Leme da Silva e Antonio Correia de Lemos, avaliada em 32$000 (INV , 1921, vol 19:349-378)
Rua que vae para o Colégio
– Luzia Leme e seu marido construíram casas já no final do século XVI na “rua que vae para o Colégio”, uma casa de sobrado com seu corredor e quintal e outro lanço térreo, tudo de taipa de pilão, cobertos de telhas, vizinhos de Manuel Fernandes Gigante e João Vieira da Silva. Possuíam também um sítio em Pinheiros com casa de três lanços de taipa de pilão que “estão principiadas que lhe falta por as madeiras e duas casas de taipa de mão coberta de telhas, com sua olaria de fazer telhas já desmantelada, com sua vinha e quintais cercados de taipa de pilão”, tudo avaliado em 64$000. Possuíam entre mais de uma centena de escravos, uma escrava angolana avaliada em 40$000. O patrimônio por ocasião da morte de Luzia Leme foi avaliado em 1:576$860 (um conto, quinhentos e setenta e seis mil e oitocentos e sessenta reis. (INV, vol.15:409-467)
– Antonio Pedroso de Barros possuía seis braças de chãos na rua Direita da Misericórdia, vizinhas das casas de Francisco Rodrigues da Guerra e casas dos herdeiros de Pedro Vaz de Barros, avaliados em 24$000. Além disso, possuía casa de dois lanços com seu quintal pequeno coberta de telhas, as quais houve do defunto Estevão de Brito, vizinhas de outras casas do dito defunto e chãos de Luzia Leme, avaliadas em 32$000. E outra casa de dois lanços que estão pegado a Manuel …. de taipa de pilão coberta de telhas, já danificadas e desbaratadas avaliada em 20$000. O patrimônio de Antonio Pedroso de Morais foi avaliado em 1:275$150. (INV. 1921, vol, 20:5-243)
Todos esses moradores eram proprietários de fazendas maiores ou menores e suas casas na roça eram sempre de taipa de mão e cobertas de telhas. A família era constituída de esposa e de até 10 filhos. Possuíam escravos índios que ajudavam na lavoura e nas lidas domésticas e não raro aprendiam ofícios como os de tecelão, alfaiate, sapateiro. carpinteiro, ferreiro e até músicos. Os escravos eram batizados e recebiam nomes cristãos.
A vila e seu termo passava no final do século XVI de 100 moradores e tinha 5 ou 6 caminhos e uma ponte por fazer. Esses moradores tinham suas roças e lavouras situadas na banda da Ponte Grande, 16, no Ibirapuera, 20 e no caminho de Pinheiros, 7, segundo a ata da câmara de 23 de maio de 1584. (ATAS, 1967:237)
No fim do século XVI a vila já não comportava mais nenhum morador e no dia 26 de março de 1590 o procurador do Concelho, Gonçalo Madeira solicitou que se nomeassem dois homens para partidores de terras sendo nomeado um homem cujo nome não constou da ata. Foi, no entanto, o nosso primeiro urbanista, quem sabe o que traçou as duas primeiras ruas fora dos muros, as atuais ruas de São Bento e Direita. (ATAS, 1967:391)
Em 16 de fevereiro de 1591 os oficiais da câmara pediram que “se alargasse a cerca por fora de maneira que haja espaço para que fique a gente agasalhada e haja espaço para pelejarem, sendo necessário”. (ATAS, 1967: 415)
Não houve, no entanto, necessidade de pelejarem porque desde então não sofreram nenhum ataque de índios. Com o aumento da população, iniciaram a abertura gradativa de ruas fora dos muros até a ocupação total do terraço fluvial, quando a vila foi elevada à categoria de Cidade pela Carta Régia de 11 de junho de 1711.
Referências bibliográficas
ATAS DA CÂMARA DA CIDADE DE SÃO PAULO 1562-1596. São Paulo, Divisão do Arquivo Histórico, 1967.
ACTAS DA VILA DE SANTO ANDRÉ DA BORDA DO CAMPO. São Paulo, Duprat, 1914.
INVENTÁRIOS E TESTAMENTOS. São Paulo, Tipografia Piratininga, 1920-1921, vol. 1 a 20.
LEITE, Serafim. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. São Paulo, Comissão do IV Centenário, 1958.
SANTANA, Nuto. Os muros defensivos da vila. in Ensaios Paulistas. São Paulo, Editora Anhambi, 1958.
COMO CITAR ESTE TEXTO (ABNT 2017):
ROCHA FILHO, Gustavo. A Vila de São Paulo do Campo ou de Piratininga. 2017. Disponível em: <https://historiadesaopaulo.com.br/a-vila-de-sao-paulo-do-campo-ou-de-piratininga/>. Acesso em: ___.