por Gustavo Neves da Rocha Filho
Sempre é bom lembrar que os historiadores se valem dos documentos escritos deixados pelas sociedades que analisam e na maior parte das vezes os interpretam com o intuito de valorizar sejam pessoas, sejam feitos dessa sociedade tais como conquistas de território, guerras, mas também feitos econômicos e sociais. Encontramos na história de São Paulo interpretações fantasiosas e ufanistas como as dos primeiros membros do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, fundado em 1894, que não serão citados nem considerados.
Nestes pequenos ensaios vamos privilegiar os documentos coevos – aqueles deixados pelos que viveram na mesma época – como as cartas escritas pelos primeiros jesuítas do Brasil, as atas das câmaras das vilas de Santo André da Borda do Campo e de São Paulo e os Inventários e Testamentos.
Por outro lado, antropólogos, etnógrafos e sociólogos privilegiam a observação direta e os testemunhos orais e dessa maneira serão citados ao longo dos textos, notadamente quanto à vida e obra dos indígenas encontrados no Brasil.
Para o conhecimento das sociedades indígenas desaparecidas não temos textos, pois eles não utilizavam a escrita. Temos, no entanto, vestígios materiais que elas deixaram e com os quais nem historiadores, nem antropólogos estão acostumados a tratar.
São os arqueólogos que estudam esses vestígios, com os mesmos objetivos dos outros pesquisadores das ciências humanas, mas utilizando métodos e técnicas diferentes.
É bastante divulgado o fato de que os primeiros vestígios arqueológicos – ossadas humanas misturadas às de animais – foram encontrados nas cavernas de Lagoa Santa, em Minas Gerais, em meados do século XIX. Mas foi só depois da segunda metade do século XX que a arqueologia passou a ser objeto de estudo no Brasil, muito embora já existissem estudos sobre os sambaquis de Cananéia, no litoral de São Paulo.
André Prous, arqueólogo francês, autor de vários livros e artigos científicos, em atividade entre nós desde 1971, ministrando aulas de pré-história na Universidade de São Paulo, publicou em 2006 um livro no qual faz uma breve história da arqueologia no Brasil.
Diz o autor citado que no final dos anos 1960, o projeto Nacional de Pesquisa Arqueológica (Pronapa), procurou montar um quadro preliminar da pré-história do litoral desde o Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte e que o número de pesquisadores começou a crescer nos anos 1980, com a criação da Sociedade Arqueológica Brasileira (SAB). A partir dos anos 1990, vários arqueólogos criticaram algumas pretensões exageradas desse movimento. (PROUS, 2006: 11)
A outra maneira de descobrir o passado é a arqueologia aérea, ainda pouco utilizada entre nós. Podemos citar os trabalhos realizados por dois arquitetos, alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, o primeiro objeto de Iniciação Científica financiado pela FAPESP e o segundo como Dissertação de Mestrado financiado pelo CNPq.
Daniel Issa Gonçalves usou a fotografia aérea para identificar as trilhas indígenas e reconstruir o seu traçado dentro dos limites da Cidade de São Paulo (GONÇALVES, 1998). Pedro Francisco Rossetto usou a fotografia aérea para a reconstituição do traçado da primitiva “estrada dos Goiases” dentro da área urbana da Cidade de Campinas (ROSSETTO, 2006).
A fotografia aérea permite estudar a superfície da terra e tudo o que sobre ela foi construído pelo homem. Esta técnica de trabalho resultou da conquista do ar pelo homem. Antes da primeira guerra mundial foram feitas algumas tentativas para observar sítios arqueológicos por balões, mas de uma maneira muito limitada.
De 1916 a 1919, o francês Léon Rey utilizou a fotografia áerea para o estudo das habitações antigas da Macedônia, e publicou suas observações em 1921. (LAMING, 1952:45)
Por sua vez, o inglês Beazeley observou e fotografou sítios arqueológicos, cidades antigas e redes de irrigação abandonadas na Mesopotâmia e publicou em 1919 os resultados obtidos (LAMING, 1952:45).
Jean Baradez, diretor das “Antiguidades da Argélia” efetuou desde 1946 prospecções sistemáticas e aprofundadas em Tipasa, uma vila antiga do Mediterrâneo. Ao contrário de seus predecessores, que utilizavam fotografias aéreas inclinadas de baixa altitude, Baradez usou fotografias verticais de grande altitude de maneira a cobrir enormes áreas do terreno. Seu mais importante trabalho, Fossatum Africa, foi publicado em Paris, em 1949. (BURGER, 1957:12)
No Brasil, acreditam os arqueólogos que a cultura tupi-guarani surgiu há mais de 3.000 anos na Amazonia central. O grupo guarani expandiu-se seguindo o curso dos rios Madeira, Purus e Paraguai alcançando o Brasil meridional. Foram os ancestrais dos tupiniquins. Outro grupo, ancestrais dos tupinambás, desceu pelo rio Amazonas, daí evoluindo rapidamente para o sul, ocupando todo o litoral desde o Rio Grande do Norte até o litoral norte do Estado de São Paulo.
Quanto ao litoral do sul do Brasil, acreditam os arqueólogos que também originários da Amazônia os tupi-guaranis, teriam emigrado há cerca de 3.000 anos dirigindo-se ao Paraguai, onde sua presença é datada aproximadamente desde o ano 500 a.C.
Enquanto boa parte permaneceu no Paraguai, outros foram migrando para a Bolívia, a Argentina e ao sudeste do Brasil formando um conjunto de caminhos, o Peabiru, que alcançava o litoral de Santa Catarina. Aí já nomeados tupiniquins. No litoral, expandiram-se para o sul e para o norte, até Bertioga onde encontraram o território ocupado pelos tupinambás.
Os sambaquis encontrados desde o litoral do Rio de Janeiro até o Rio Grande do Sul são obra de povos que viveram há 6.500 anos atrás, segundo pesquisas arqueológicas desenvolvidas depois de 1950. Os sítios mais antigos são construções edificadas com moluscos que acumulavam em plataformas onde sepultavam seus mortos.
“Há poucos indícios de comunicação entre os sambaquianos e as culturas encontradas pelos europeus nos planaltos. A serra do Mar parece ter atuado, até 2.000 anos atrás como barreira física. (PROUS, 2006:40)
Com a arqueologia aérea descobrimos, com a técnica preconizada por Jean Baradez, uma trilha indígena galgando a Serra do Mar desde um manguezal situado em frente ao atual porto de Santos.
Utilizamos as fotografias, em escala de 1:25.000, do Levantamento Aerofotogramétrico realizado em 1962 pela empresa Aerofoto Natividade Ltda. para o Governo do Estado de São Paulo, disponíveis no Arquivo de Fotografias Aéreas do Departamento de Geografia da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da USP.
A trilha encontrada sobe por um esporão da Serra do Mar, pela crista do morro que separa as bacias dos rios Quilombo e Jurubatuba percorrendo uma rampa constante de 5% com 20 Km de extensão, até cerca de 1.000 metros de altitude.
Atingindo o topo do morro a trilha volta a descer, agora pelo divisor de águas dos rios Taiaçupeba Açu, Taiaçupeba e Guaió de um lado e do outro pelos rio Jurubatuba (formador do rio Grande) e o ribeirão Pires, procurando as nascentes do ribeirão Aricanduva e descendo sempre pelas cristas dos morros até a margem do rio Tietê.
A fotografia aérea consultada é de 1962, quando o rio Tietê já estava retificado, mas ainda conservava um braço do antigo leito. Onde deságua o ribeirão Aricanduva parece ter existido um sambaqui modesto, feito com conchas de água doce e sobretudo caramujos terrestres. Muito próximo, a montante do rio Tietê encontra-se um terraço fluvial com cerca de 20 metros de altura, local ideal para uma aldeia indígena. De fato aí esteve situada uma aldeia, não mencionada nos textos quinhentistas.
Porém, o arqueólogo Astolfo Araújo registra que nesse local
” No dia 18 de março de 1920 foi a vez do bairro da Penha; trabalhadores cavando uma trincheira para a colocação de tubulação entre as ruas Rodovalho Junior e Capitão José Cesário, encontraram um precioso vaso mortuário, que era visivelmente feito com barro turfoso da várzea do Tietê, com restos de esqueleto. (ARAÚJO,1995: 61)
As cartas dos jesuítas, sempre muito detalhadas, não mencionam a existência de nenhuma aldeia na Penha, embora subindo o rio Tietê, em 1563, quando foram dar guerra aos índios tamoios instalados às margens do rio Paraíba passaram junto ao terraço fluvial citado. A conclusão é que a aldeia já não existia.
Seu caminho é desta maneira. Vão primeiro por um rio algumas jornadas em canoas tão grandes que cabem vinte e vinte e cinco pessoas com seu mantimento e armas. (…) Chegados ao porto do primeiro rio (…) levam as canoas às costas até chegar a outro rio que está já na terra dos inimigos. (LEITE, 1958: 378)
Semelhante a outras aldeias conhecidas, que duraram meio século, a aldeia do ribeirão Aricanduva teria origem por volta do ano de 1450 e foi abandonada nos primeiros anos do século XVI.
Prosseguindo na pesquisa arqueológica aérea encontramos uma bifurcação da trilha no ponto mais alto do divisor de águas dos ribeirões Pires, Guaió e Tamanduateí. A trilha prossegue pelo divisor das águas dos ribeirões Pires e rio Grande, ao sul, e bacia do rio Tamanduateí ao norte, seguindo pelo divisor de águas dos ribeirões Água Espraiada e Cupecê até encontrar o rio Pinheiros.
Sobre a margem de um braço do rio Pinheiros remanescente da sua retificação, ainda visível nas fotografias de 1962, encontramos um terraço fluvial de pouca altura. Aí esteve localizada a aldeia de Jurubatuba.
Prova da existência da aldeia nesse terraço fluvial foi o encontro de três recipientes, um deles servindo de urna funerária, com restos de ossos e dentes soltos e vasilhames de argila cozida no desaterro para a construção da fábrica da Kibon, em 1959. (ARAUJO, 1995:61)
Percorrendo a trilha, desde as nascentes do ribeirão Cupecê, ela prossegue na direção norte, deixando a leste os afluentes dos rio Tamanduateí e a oeste o vale do rio Pinheiros constituindo atuais vias urbanas, ou seja, as avenidas Eng. Armando de Arruda Pereira e Jabaquara, ruas Vergueiro, Liberdade, Rodrigo Silva e Quintino Bocaiuva, até o centro histórico de São Paulo.
Na extremidade da rua Quintino Bocaiuva, no Largo da Misericórdia, encontrava-se a porta de entrada da Aldeia de Piratininga inserida no triângulo formado pelas atuais ruas Direita, Quinze de Novembro e São Bento. E como de costume, essa aldeia ocupa o magnífico terraço fluvial a cavaleiro da confluência do ribeirão Anhangabau com o rio Tamanduateí.
No início da avenida Eng. Armando de Arruda Pereira e fim da avenida Jabaquara, próximo às nascentes do Córrego da Traição, atualmente leito da Avenida Bandeirantes, pudemos encontrar vestígios de outra antiga aldeia também num terraço fluvial. O local está hoje ocupado pelo aeroporto de Congonhas.
Pesquisando na internet, o eng. Eugênio Neves da Rocha descobriu uma fotografia aérea de baixa altitude, inclinada de 45 graus, tomada no ano de 1940 pela ENFA-Empresa Nacional de Fotografia Aérea, onde aparece em primeiro plano uma pista de pouso e decolagem com 300 metros de comprimento. Era o Campo de Congonhas, inaugurado por uma empresa privada, a Auto-Estrada, em 1934.
O Campo de Congonhas foi vendido ao Governo do Estado. Construiu-se o atual aeroporto com um aterro efetuado nas duas extremidades da primitiva pista, ampliando-a para os atuais 1.800 metros.
Examinando as fotografias verticais aéreas de 1962 encontramos vestígios da antiga aldeia entre as duas pistas atuais, terreno que se encontra em estado natural e que se transforma em lamaçal na época das chuvas. É perfeitamente visível, entre as duas pistas, onde o terreno sofreu pequeno desaterro, vestígios do pátio circular da aldeia que aí existiu, cuja circunferência permite estabelecer em 30 metros o raio do círculo.
Para confirmar a existência dessa aldeia, por ocasião das obras de terraplenagem para a construção das atuais pistas o Brigadeiro José Jorge Abdalla, que as acompanhou, em depoimento pessoal ao autor, em 2015, lembra que foi encontrado um “pote de barro com ossos dentro” e que o local parecia um cemitério de índios tal a quantidade de ossos existente.
Pesquisas nas atas da câmara da Vila de São Paulo e nos textos das cartas dos jesuítas permitiram reconhecer essa aldeia como sendo a Aldeia de Ibirapuera.
Na ata da câmara da Vila de São Paulo do dia 30 de março 1575, onde seria levantada a forca,
“mandam fazer o caminho do concelho que vai daqui para virapuera” (ATAS, 1967:71)
A carta trimestral de José de Anchieta, datada de 1556, diz textualmente que
“encontra-se agora entre eles o Padre Luiz, emprenhando-se com todo o cuidado não só aí mas noutra Aldeia, distante duas milhas, lançando os fundamentos da fé, visitando essa aldeia frequentemente mas vivendo em Jaraibatiba. (LEITE, 1957:509)
Na Genealogia Paulistana de Silva Leme, lemos que
Braz Gonçalves casou-se com a filha do cacique da Aldeia de Virapuera, batizada com o nome de Margarida Fernandes. (LEME, 1902:22)
A Aldeia de Jurubatuba já devia existir antes de 1500 pois seu cacique, Caiubi, o índio batizado João, muito celebrado pelos jesuítas, faleceu com mais de cem anos, em 1561.
Supostamente filho de Caiubi, Tibiriçá deve ter nascido em Jurubatuba no começo do século XVI pois faleceu no Natal de 1562, já sexagenário, vítima de um ataque de varíola.
A Aldeia de Ibirapuera, pouco mencionada nos documentos coevos, seguramente mais nova do que a Aldeia de Jurubatuba e mais velha do que a Aldeia de Piratininga deixou de existir quando morreram quase todos os seus habitantes na epidemia de varíola de 1563.
A Aldeia de Piratininga já existia ou estava em construção quando Tibiriçá, em companhia de João Ramalho, desceu ao litoral por ocasião da chegada de Martim Afonso de Souza, em 1531. Depois da vinda dos jesuítas, Tibiriçá, o maioral dos índios do planalto, recebeu no batismo o nome de Martim Afonso Tibiriçá, com certeza para igualar-se ao donatário da Capitania de São Vicente.
A Aldeia de Piratininga foi abandonada em 1560 pelos índios que não suportaram a disciplina imposta pelos padres que tinham chegado em 1554. Construíram grupos de choças nas imediações, em locais não determinados e os mais revoltados ameaçaram de morte os jesuítas e juraram destruir a igreja que tinha sido inaugurada em 1558. Cumpriram o prometido com o ataque de 9 de julho de 1562 mas foram rechaçados pelos seus próprios irmãos, primos e sobrinhos, parentes que tinham ficado fieis à religião e aos padres, inclusive Tibiriçá.
Estas foram as três aldeias mencionadas pelo Padre Manoel da Nóbrega quando, em 31 de agosto de 1553 fez 50 catecúmenos entre meninos e meninas para lhes ensinar a ler e escrever, e dois Irmãos para doutriná-los como conta carta aos seus superiores datada de São Vicente
“el Campo de aqui doze legoas se quiere ayntar tres poblacionaes para mejor aprender la doctrina” (LEITE, 1956:496).
Referências bibliográficas
ARAUJO, Astolfo. O Segredo do Quintal. Cidade. Revista do DPH, Sec. Mun.da Cultura. São Paulo (2) 60-61, 1995
ATAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. São Paulo, Divisão do Arquivo Histórico, 1967
BURGER, A. Photographies aériennes et aménagement du territoire. Paris, Dunot, [1957]
GONÇALVES, Daniel Issa. O Peabiru: uma trilha indígena cruzando São Paulo. São Paulo, FAU – Cadernos de Pesquisa do LAP, 1998
LAMING, A. La Découverte du passé. Paris, Ed. Picard, 1952
LEITE, Serafin. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. São Paulo, Comissão do IV Centenário, 1958
LEME, Luiz Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana,
São Paulo, Duprat, 1903
MAESTRI, Mário, Terra do Brasil. A Conquista Lusitana e o Genocídio Tupinambá. São Paulo, Moderna, 1993
PROUS, André. O Brasil antes dos brasileiros. Rio de Janeiro, Zahar, 2006
ROSSETTO, Pedro Francisco. Reconstituição do traçado da “estrada dos Goiases” no trecho da atual mancha urbana de Campinas. São Paulo, Anais do Museu Paulista, 2006
COMO CITAR ESTE TEXTO (ABNT 2017):
ROCHA FILHO, Gustavo. A pré-história de São Paulo: a descoberta do passado. 2017. Disponível em: <https://historiadesaopaulo.com.br/a-pre-historia-de-sao-paulo-a-descoberta-do-passado/>. Acesso em: ___.
Excepcional síntese geográfica-histórica-arqueológica!
Professor, estou pensando em fazer algumas expedições de campo nos locais indicados como trilhas com base nas fotografias aéreas de 1962, gostaria de conversar com o senhor, como está? Tudo bem? Mande notícias, saudades…
Pablo