A importância das cartas dos primeiros jesuítas do Brasil

por Gustavo Neves da Rocha Filho

Para comemorar o IV Centenário da Cidade de São Paulo, ocorrido no ano de 1954,  o Governo do Estado organizou várias comissões encarregadas das celebrações daquela efeméride.

Coube à Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, por proposta de um de seus membros, Sérgio Buarque de Holanda, publicar as cartas dos Padres, Irmãos e autoridades jesuítas redigidas entre 1538 e 1565, por serem documentos da maior importância para a história tanto de São Paulo, quanto do próprio Brasil.

A publicação constou de três alentados volumes de mais de quinhentas páginas cada um, dados a público em 1956, 1957 e 1958. Foram publicadas 207 cartas, sendo 143 oriundas do Brasil redigidas por Padres e Irmãos e 64 respostas das autoridades sediadas em Lisboa, Trento e Roma.

As 143 cartas do Brasil provieram da Bahia (76), São Vicente (31), Piratininga (13), Espírito Santo (7), Porto Seguro (7), Pernambuco (5), Santos (2), Rio de Janeiro (1) e Ilhéus (1).

As primeiras cartas originaram-se da Bahia em 10 de abril de 1549, de Porto Seguro em 6 de janeiro de 1550, de São Vicente em novembro de 1550, de Pernambuco em 1º de agosto de 1551, do Espírito Santo em 14 de agosto de 1551, de Piratininga de julho de 1554 até 8 de janeiro de 1565, do Rio de Janeiro em 31 de março de 1560, de Santos em 22 de abril de 1560 e a última, de Ilhéus em 11 de março de 1563.

As cartas oriundas de São Vicente foram redigidas por Leonardo Nunes (4), Nóbrega (13), Pero Correia (5), Diogo Jácome (1), Maximiniano (1), Antonio Rodrigues (1), Anchieta (5), e um Irmão não identificado (1).

As cartas de Piratininga foram redigidas por Anchieta (11), Nóbrega (2) e Luiz da Grã (1).

Ao contrário do isolamento que somos levados a supor, os jesuítas mantinham estreito contato entre si em todos os quadrantes do mundo quinhentista. As primeiras cartas de Nóbrega do ano de 1549, depois de lidas em Portugal já estavam em Roma no fim desse mesmo ano, sendo distribuídas cópias pelas Casas e Colégios europeus, e por mar chegando a Goa e dali até os confins do Oriente em navios que partiam de Lisboa.

De Goa, escreve Luiz Froes a 1º de dezembro de 1552 aos Irmãos de Coimbra:-

“As cartas de Portugal que vieram assim desse Colégio como do Brasil, no ano de 1552, sobre maneira nos alegraram. Na noite em que chegaram se leram até à uma depois da meia noite e no refeitório todos os dez dias seguintes. E logo, tresladado o sumário delas, foram mandadas à China, Japão, Molucas e Málaga e todas as mais partes donde os Padres nossos andam”. (LEITE, 1956:54)

Como os negócios das Missões ultramarinas da Companhia de Jesus se tratavam em Lisboa, o Provincial de Portugal tinha a faculdade de abrir as cartas, menos as destinadas exclusivamente ao Padre Geral. Antes de remetê-las a Roma era preciso copiá-las. O trabalho de cópias multiplicava-se com o aumento constante das Missões e então passaram a ser impressas. Escolhiam as cartas antigas e incluíam outros textos, como, por exemplo, a “Informação das Terras do Brasil” de Nóbrega em 1549.

Assim, estas cartas não ficaram só entre os jesuítas, mas também entre o povo, entrando nas casas de gente culta como novela ou jornal  Quando Nóbrega faleceu, em 1570, a sua “Informação” tinha nada menos  que seis edições, traduzidas em espanhol, italiano e latim e, em 1586, também se imprimiu em alemão. Ela foi publicada pela primeira vez no Brasil em 1835 na obra Anaes do Rio de Janeiro, de Silva Jardim, uma história do Brasil, em 7 volumes, abrangendo o período da descoberta até a chegada de D. João VI, em 1808.

A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro publicou doze cartas todas anteriores a 1552, em diversos volumes entre 1849 e 1918. Uma edição da Imprensa Nacional, de 1887, contendo 63 cartas, perdeu-se quase toda em incêndio na própria editora. Em 1931, a Academia Brasileira de Letras publicou novamente as cartas dessa edição perdida no sinistro. A partir de 1934, o Padre Serafim Leite seria o grande artífice da História dos Jesuítas. Os três volumes publicados pela Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo fazem parte da sua obra, Monumenta Historica Societatis Iesu.

A Editora da Universidade de São Paulo publicou em 1988, com o título de Cartas do Brasil as cartas de Padre Manoel da Nóbrega e a Edições Loyola, em 1984, publicou uma 2a. edição das cartas do Padre José de Anchieta, com pesquisa, introdução e notas do Padre Hélio Abranches Viotti, S.J.

A publicação da Loyola inclui a última carta escrita por Anchieta datada de São Vicente, 8 de janeiro de 1565 não incluída na edição do IV Centenário. Em 9 de julho desse mesmo ano Anchieta já estava na Bahia para onde se deslocara afim de ser ordenado padre. Esteve em Piratininga desde 1954.

“Por isso, alguns dos Irmãos mandados para esta Aldeia no ano de 1554, chegamos a ela a 25 de janeiro e celebramos a primeira missa numa casa pobrezinha e muito pequena no dia da Conversão de São Paulo e por isso dedicamos ao mesmo esta nossa casa”. (LEITE, (1957:104)

Ordenado padre em 1566, Anchieta passa a desempenhar daí por diante o ofício de Superior até o ano de 1597, de sua morte. Nessa condição esteve em São Vicente em 1570, no Espírito Santo em 1588, no Rio de Janeiro em 1592 e novamente no Espírito Santo de 1596 até 1597, ano em que faleceu.

Uma carta de Anchieta ao Capitão Jerônimo Leitão, datada de Piratininga, 15 de novembro de 1579, publicada em apêndice pela Edições Loyola, o Padre Viotti considera falsa quando escreve:

“estamos convencidos de que a carta ao Capitão Jerônimo Leitão, exposta desde 1926 no Museu Paulista do Ipiranga, também conhecida vulgarmente como Carta do Café, por ter sido adquirida naquele ano aos Livreiros Maggs & Brothers de Londres, mediante uma coleta entre fazendeiros paulistas de trinta sacas de café não passa de uma carta apócrifa. Tal carta destoa inteiramente das demais, seja pela forma, seja pelo conteúdo. O estilo desta carta não se compatibiliza com a personalidade de Anchieta. Papel, grafia, letra e alusões até certo ponto condizentes com pessoas e coisas da Capitania de São Vicente no século XVI, teriam podido convencer a não poucos de nossos melhores historiadores e literatos da época de se tratar de um precioso autógrafo anchietano. A fama, aliás, daqueles antiquários e alfarrabistas ingleses seria outra razão para que se aceitasse como autêntica essa peça, por mais que o seu texto, logo à primeira vista, devesse causar não leve estranheza” (ANCHIETA, 1984:443)

Um outro autor, J.G. Moraes Filho, com o título “Um suposto autógrafo anchietano” publicado na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo (vol. CLI, ano de 1952) deixou esclarecida a possibilidade fosse aqui mesmo forjada, quando entre 1911 e 1925 um grupo de falsários – Roncatti, Celestino e outros – fabricavam por encomenda de advogados “grileiros” cartas de sesmarias, formais de partilha, títulos de mão e escrituras que apresentavam as mais extraordinárias semelhanças com escrituras autênticas. Antes de 1922, quando ficou conhecido o catálogo daquela livraria inglesa a carta de Anchieta já estava mencionada em que deu notícia a Revista do Brasil em artigo de Gentil de Moura. (ANCHIETA, 1984:443)

De modo geral as cartas dos primeiros jesuítas no Brasil devem ser lidas com certa reserva, pois como ressalta o próprio editor, o Padre Serafim Leite, citando Astrain,

“então dominava aos historiadores piedosos uma devota parcialidade, que os inclinava a ver em tudo virtudes eminentes, ações heróicas, milagres estupendos, êxtases, visões, arroubamentos, revelações, profecias, tudo um mundo de maravilhas espirituais, que arrastados pela ânsia de encomiar tudo, chegaram algumas vezes à manifesta falsificação.” (LEITE, 1958:118*)

Mas com certeza as cartas desses primeiros quinze anos dos jesuítas no Brasil permitem conhecer fatos importantes desse período, entre eles as epidemias que provocaram a morte de milhares de índios como se verá a seguir.

Na carta datada de São Vicente, fim de março de 1555, redigida em latim, Anchieta acrescenta em posposto que

“soubemos também agora que os índios quase todos caíram em grave doença e maior parte morreram, na Aldeia de Maniçóba, de que expulsaram os Irmãos da Companhia, ocupados em ensinar aos infiéis a doutrina de Cristo” (LEITE, 1956:209)   

O Irmão Antonio de Sá, em carta datada do Espírito Santo em fevereiro de 1559 endereçada aos Padres e Irmãos da Bahia diz que

“Na Aldeia com as velhas não há cousa que as mova da nossa parte para quererem receber o batismo, porque tem por mui certo que lhe deitam à morte com o batismo. (…) Mas muitas morriam em sua pertinacia. Finalmente que morreu muita gente, entre outros muitos, 70 almas. (…) Primeiramente foi grande a mortandade assim nos escravos desta Capitania como nos forros e tão acelerados que no dia que lhe dava até o 6º os levava, a uns com prioris a outros com câmaras de sangue e muitos aparelhados e batizados passavam desta transitória vida à eterna porque se fazia dia de enterrarem treze, por estar já o adro cheio botavam dois em uma cova. Finalmente, que em breve tempo achamos por conta de 600 escravos serem mortos” (LEITE, 1958:20)

O Padre Rui Pereira, dirigindo-se aos Padres e Irmãos de Portugal em carta datada da Bahia em 15 de setembro de 1560 informa que

“Por este Espírito Santo começou aqui, como ramo de peste, entre estes índios desta igreja, que morreram assim de grandes como de pequenos em breve tempo até sessenta ou mais. Finalmente, em quanto isto durou não havia certo tempo de repousar, porque de noite estando dormindo nos chamavam muitas vezes para irmos acudir os que estavam a morrer e batizá-los. O ordinário era enterrar, cada dia, ora um, ora dois, ora três, ora quatro. E às vezes levavamos dois e eram as covas dos defuntos tantas que para não desacoroçoarem dizia o Padre Vice-Provincial que os cobríssemos com a terra. Batizamos três, quatro e enterravamos outros tantos, e às vezes com tanta pressa que, por poder acudir a todos, batizavamos sem a cerimônia. E posto que o mais do tempo andavamos entre eles, quis Nosso Senhor que nunca se nos apegou a doença “. (LEITE, 1958:291)

O Irmão José de Anchieta em sua última carta datada de São Vicente, 8 de janeiro de 1565, ao Padre Diogo de Laynes, em Roma, esclarece a causa dessas epidemias.

“A principal destas doenças foram as câmaras de sangue [identificadas com sendo variola] as quais ainda brandas e como as costumadas não têm perigo e facilmente saram. Mas há outras que é cousa terrível, cobre-se todo o corpo dos pés à cabeça de uma lepra mortal, que parece couro de cação e ocupa logo a garganta por dentro e a língua, de maneira que com muita dificuldade se podem confessar e em três ou quatro dias morrem. Outros vivem, mas fedendo-se todos e quebra-se-lhe a carne pedaço a pedaço com tanta podridão de matéria, que sai deles um terrível fedor, de maneira que acodem-lhe as moscas à carne morta e apoderecida onde aparecem gusanos que os comeriam vivos se não lhes socorresem”. (ANCHIETA, 1984:250)

Referências Bibliográficas

ANCHIETA, José de. Cartas. Correspondência Ativa e Passiva. São Paulo, Edições Loyola, 1984

LEITE, Serafim. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil São Paulo, Comissão do IV Centenário, 1956 volume I, 1957 volume II e 1958 volume  III.

 

COMO CITAR ESTE TEXTO (ABNT 2017):

ROCHA FILHO, Gustavo. A importância das cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. 2018. Disponível em: <https://historiadesaopaulo.com.br/a-importancia-das-cartas-dos-primeiros-jesuitas-do-brasil/>. Acesso em: ___.