A lavoura do trigo em São Paulo – Século XVII

por Gustavo Neves da Rocha Filho

“Senhor

Posto que o capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escreveram a Vossa Altesa a nova do achamento…”

Assim tem início a famosa carta de Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota de Pedro Alvares Cabral, e assim termina:

“Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro. Porém a terra em si é de muitos bons ares … E de tal maneira graciosa, que, querendo aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”.

O trigo também deu, mas foi muito pouco, como veremos neste ensaio.

O moinho banal
Fonte: Silva, J. História da Civilização para o terceiro ano ginasial (2a. ed.). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1934.

Ambrosio Fernandes Brandao, em seu livro, “Diálogo das Grandezas do Brasil”, composto em 1618, mencionando o trigo conta que:

“o qual não produz a terra, sendo pela pouca curiosidade dos que as habitam; porque eu semeei já por duas ou três vezes na Capitania de Pernambuco […] mas não chegou a perfeição porque […] anoiteceu todo comido dos pássaros”.

Os portugueses já haviam tentado plantar o trigo na Ilha de São Tomé, sem resultado.

“Tendo-se experimentado muitas vezes, e em diversos tempos do ano, semear o trigo, parece que ele não pode chegar aqui a sua perfeita maturação e que não produz espiga cheia; cresce, porém, todo em erva sem que se crie grão algum”.

A cultura do trigo surge no planalto de Piratininga no começo do século XVII, como se pode constatar pela leitura das Atas da Câmara da Vila e dos Inventários e Testamentos que, decifrados pelos paleógrafos, foram publicados a partir de 1920 pela Prefeitura e pelo Governo do Estado de São Paulo, respectivamente.

Assim, na Ata dezembro de 24 de dezembro de 1612 lê-se:

“Os donos ou senhores de moinhos que na terra há, levem somente de seis alqueires um de moer”.

Na Ata de 12 de fevereiro de 1614:

“João Fernandes de Saavedra, morador nesta Vila de São Paulo, quer fazer um moinho em seu ribeiro que está no caminho da jeira [?], pede licença que arme o moinho, como pede sessenta braças em quadra e isto para o sítio do moinho”.

Na Ata de 26 de dezembro de 1615:

“muitas pessoas se queixaram que os moinhos da terra levavam muito dos trigos que moíam e que lhes parecia que de cinco alqueires se pagasse um da moenda”.

Na Ata de 6 de fevereiro de 1616:

“carta de dada de água e terra a Manuel João para fazer dois moinhos em uma água saindo-lhe do caboulo, a outra parte da banda […] as quais em uma banda dos pinheiros e a outra banda do além; lhe davam 20 braças pegado com o moinho, as braças em quadra”.

Na Ata de 8 de fevereiro de 1619:

“os senhores de moinhos não levem mais do que um de oito alqueires, e que a farinha de trigo que se vendesse de hoje por diante se vendesse e comprasse por arroba”.

Na Ata de 23 de fevereiro de 1619:

“apareceram os senhores de moinhos que não se atrevem a moer mais de oito alqueires por um, visto as despesas que tem com ferreiro, carpinteiro e outras coisas e que de sete alqueires levassem um e os vereadores aprovaram”.

Na Ata de 4 de abril de 1620:

“porquanto há falta de dinheiro resolveram que quem trouxesse vinho vendesse a troco de fazendas da terra, a saber: couros, cera, farinhas de trigo, pano de algodão”.

Na Ata de 25 de abril de 1626:

“mandaram que todas as pessoas que tivessem moinhos nesta vila levassem um de oito alqueires de maquia”.

Alcântara Machado, em seu livro publicado em 1929, “Vida e Morte do Bandeirante”, são essas as suas palavras iniciais:

“Serviço que marca a história de São Paulo prestou o Arquivo do Estado, com a publicação dos Inventários processados de 1578 a 1700 pelo primeiro cartório de órfãos da Capital […] A documentação reunida nos vinte e sete volumes editados encerra subsídios inestimáveis para a determinação da época, do roteiro e da composição das “entradas”. Constitui generoso manancial de notícias relativas a organização da família, da vida íntima, economia e cultura dos povoadores e seus descendentes imediatos”.

No presente ensaio, para investigar a economia do trigo em São Paulo do século XVII, foram destacados 40 dos 370 Inventários, referentes anos de 1610 ate 1680, os únicos que mencionam aquele cereal.

Os Inventários mencionam as propriedades imobiliárias, em geral casas de taipa de pilão cobertas de telha situadas na Vila e as casas de taipa de mão cobertas de palha

situadas nas roças, bem como o número de escravos, as ferramentas como foices, foices de segar, enxadas, machados, cabeças de gado, porcos, ovelhas, galinhas, cavalos e trigo estocado entre outros haveres.

O Inventario de Bartholomeu Rodrigues, de 1610, menciona 77 alqueires de trigo, avaliadas em 7$700 (sete mil e setecentos réis). Além disso, menciona como peças forras, 5 índios temiminos e 2 carijós e mais 85 cabeças de gado, 5 frangos e dois patos.

É necessário esclarecer que o alqueire era medida de volume, equivalente a 13,58 litros, e que a Câmara determinara que alqueire seria substituído por arroba para não confundir com área de terreno.

Assim, os 77 alqueires seriam 1.045 quilos, ou 17 sacas de 60 kg pelos padrões atuais.

O Inventário de Antonio Furtado de Vasconcelos, de 1625, menciona 200 alqueires de trigo (44 sacas), avaliados em 20$000 (vinte mil reis). Além disso, consta de 16 foices de segar trigo, 10 machados 8 enxadas; 40 porcos e gente de serviço, Luiz e sua mulher, já velhos e mais 2 casais e 10 jovens. Também possuía um moinho de água, por estar danificado, avaliado em 30$000 (trinta mil réis).

O Inventario de Antonio Ferreira, de 1627, menciona poucas ferramentas, apenas 4 foices de segar e três enxadas, 10 vacas, um casal de perus e 5 porcos.

O Inventário de Beatriz Rodrigues de Morais, esposa de Luiz Cabral, sem filhos, além da casa de taipa de mão, em que o viúvo mora, 2 sacas de trigo por colher, 150 mãos de milho, uma galinha e um galo, e gente forra, um casal com 4 filhos, três com um filho cada e um moço. Possui, também, uma égua.

O Inventário de Izabel Soares que deixa viúvo Gabriel Pinheiro e um filho com 12 anos, menciona panos de algodão, linhas, tesouras, papéis de alfinetes e colchetes e como gente forra, um casal com um filho de peito e mais um casal com 4 filhos. Tem posto em Santos, 284 alqueires de farinha de trigo (64 sacas), avaliados em 113$600 (cento e treze mil e seiscentos réis). Não possui ferramentas o que da a entender que se trata de comerciante.

O Inventário de Thomazia de Alvarenga, de 1631, que deixa viúvo Manoel Rodrigues Mexilhao, menciona 700 mãos de milho, 12 alqueires de feijão e 40 alqueires de trigo (10 sacas), 15 arrobas de carne de porco e como gente forra, dois casais com filhos e cinco outros.

O Inventario de 1633, de Joana Castilho, esposa de Jorge Rodrigues, com seis filhos, moram na Vila em casa de dois lances em taipa de pilão coberta de telhas e tem um sitio na roça com casas de taipa de mão e uma data de terras no Pequeri. O Inventario menciona 4 foices, 7 enxadas e um machado, 320 mãos de milho, 35 alqueires de feijão, 8 alqueires de feijão pardo e 16 alqueires de trigo em grão (35 sacas). Como gente forra tem um casal com filhos e seis mulheres.

O Inventário de Manuel Fernandes Sardinha, de 1633, com apenas um filho de 16 anos, apresenta um item singular, isto é, “roupas de alto preço”, avaliadas em 55$400 (cinquenta e cinco mil e quatrocentos réis). Entre muitos tecidos de alto valor, 22 peroleiras de vinho do reino, ferramentas, criações, tudo avaliado em 285$360 (duzentos e oitenta e cinco mil e trezentos e sessenta réis}, tem apenas cinco alqueires de farinha de trigo (uma saca).

No Inventário de Izabel Mendes, de 1633, consta dois casais com três filhos, quatro raparigas e dois rapazes e entre muitas ferramentas, inclusive nove foices de segar trigo, setenta e sete alqueires de trigo (170 sacas).

No Inventário de Pedro Dias, morador na Vila de São Vicente, de 1633, consta:- 38 foices de segar trigo e 350 alqueires de trigo por malhar (77 sacas) avaliados em 21$000 (vinte e um mil réis).

No Inventário de Juzarte Lopes, de 1635, consta uma seara de trigo de oito alqueires de semeadura (1,76 sacas).

No Inventário de Felipa Leme, de 1636, consta 29 alqueires de trigo “que tinha semeado”, (seis sacas).

No Inventário de Catharina Goncalves, de 1637, nada consta de propriedades imobiliárias, somente cinco enxadas e quatro foices, e doze alqueires de trigo (2,5 sacas}.

No Inventário de Domingos Bicudo, de 1637, entre casas de taipa de pilão, de três lances, coberta de telhas, avaliadas em 38$000 (trinta e oito mil réis} e gente forra, 10 casais e mais 17 solteiros, muitas ferramentas, oitenta alqueires de feijão pardo e trinta e sete de trigo em grão (oito sacas).

No Inventário de Beatriz Bicudo, de 1632, consta um sítio em Quitauna, muitos escravos, quinze casais e mais ou menos setenta solteiros. Tem sessenta alqueires de trigo avaliados em 12$000 (doze mil réis), isto é, treze sacas.

No Inventário de Antonio Raposo, o velho, de 1633, gente forra constituída de três casais e dez solteiros. Entre poucas ferramentas, 60 alqueires de trigo (13 sacas).

No Inventário de Antonio da Silveira, de 1638, só consta nove foices de segar trigo.

No Inventário de Christovão Mendes, de 1638, só consta sete foices de segar trigo.

No Inventário de Alvaro Rabelo, de 1639, consta 47 alqueires de trigo em grão (10 sacas).

No Inventário de Ignez Camacho, de 1623, consta que tem um pequeno plantio de trigo, perto da casa, e 2 foices de segar.

No Inventário de Maria de Oliveira, de 1628, consta uma tulha de trigo que está em palha, sem especificar quantidade, e cinco foices de segar.

No Inventário de Maria Luiz, de 1632, consta 10 homens e 6 mulheres de gente forra e 5 arrobas de algodão, 25 alqueires de feijão e 40 alqueires de trigo em grão (oito sacas).

No Inventário de Anastacio da Costa, de 1650, 13 mulheres e 3 homens de gente forra, 14 foices de segar e 20 alqueires de trigo (quatro sacas).

No Inventário de Manuel Joao Branco, de 1643, entre grande quantidade de gado, 64 vacas soltas, 55 vacas com suas crias, 6 novilhas, 34 novilhos, 58 bois capados, 58 no curral de Jugucussu, 28 bois capados, 6 bois colhudos, 20 novilhos, 25 vacas com suas crias, 28 vacas soltas, no curral de Manuel, 14 bois capados, 12 bois colhudos, 18 novilhos 29 vacas paridas e 17 vacas soltas. Tem, ainda, a pedra de baixo do moinho com grandes faltas, um jogo de pedras novas que está na casa do moinho do padre Marcos Mendes. Quanto ao trigo, diz ter 65 alqueires de trigo postos no porto de Santos (14 sacas).

No Inventário de Antonio Mendes, de 1642, consta 20 foices de segar trigo e 350 alqueires de trigo por malhar (79 sacas).

No Inventário de Francisco Leitao, de 1612, na Vila de Santana de Parnaíba, tem 20 alqueires de trigo (4,5 sacas).

No Inventário de Francisco Bueno, de 1638, consta um moinho com suas pedras e duas picadeiras e a casa desmanchada, avaliada em 12$000, (doze mil réis).

No Inventário de Francisco de Miranda Torres, 1642, uma casa com um pouco de trigo.

No Inventário de Antonio Gomes Borba, de 1645, na Vila de Santana de Parnaíba, consta 100 alqueires de trigo (22 sacas) postos em sua casa e pertencentes a Francisco Alvarenga.

No Inventário de Diogo Coutinho de Melo, de 1654, na Vila de Santana de Parnaíba, uma tulha de trigo, avaliada em 40$000 (quarenta mil réis).

No Inventário de Luzia Leme, de 1656, uma casa de trigo de 400 alqueires e outra de 450 alqueires e mais outra de 250 alqueires que somam 1.100 alqueires (247 sacas)avaliados em 88$000 (oitenta e oito mil réis).

No Inventário de Pedro Dias Leite, de 1658, só consta 50 foices de segar trigo.

No Inventário de Maria Bicudo, de 1660, só consta 24 foices de segar trigo.

No Inventário de Maria de Oliveira, de 1665, da Vila de Santana de Parnaíba, consta 8 alqueires de trigo em grão (duas sacas).

No Inventário de Pascoa Leite, de 1667, na Vila de Santana de Parnaíba, consta 80 alqueires de farinha de trigo no porto de Marueri, 10 alqueires de trigo em palha (20 sacas).

No Inventário de Domingos Jorge Velho, de 1671, na Vila de Santana de Parnaíba, consta um moinho na sua avaliação de 32$000 (trinta e dois mil réis) e 150 alqueires de trigo (33 sacas) avaliado em 48$000 (quarenta e oito mil réis).

No Inventário de Aleixo Leme dos Reis, de 1671, na Vila de Santana de Parnaíba, consta onze foices de segar trigo.

No Inventário Francisco Pedroso Xavier, de 1680, na Vila de Santana de Parnaíba, consta uma tulha com 130 alqueires de trigo (29 sacas).

No Inventário de Felipe de Campos, português, de 1682, na Vila de Santana de Parnaíba, consta 104 alqueires de farinha de trigo (22 sacas) avaliadas em 12$400 (doze mil e quatrocentos réis)

No Inventário de Marcelino de Carvalho, de 1684, o último dos Inventários onde se faz menção ao trigo consta um moinho em Tremembé.

Os paulistas abandonaram a cultura de trigo, depois de setenta e quatro anos, preferindo o pão de milho, o milho verde cozido, a pamonha e até a pipoca, já conhecida dos índios, sua gente forra, como eram denominados os escravos.